domingo, 19 de agosto de 2007

Aldir Brasil: Um contista Urbano

Aldir Brasil é um contista contemporâneo essencialmente urbano.Suas narrativas, em geral curtas, têm a marca da cidade e dos símbolos do seu tempo, tecendo uma escritura de registro. Seu estilo fragmentado dispensa elos coesivos e se constrói na fértil imaginação que revira a memória de sua adolescência para, através da aguçadíssima observação, extrair do cotidiano a matéria de seus escritos.

Extremamente sensível e criativo, ele passeia pela cidade, percorrendo suas ruas e seus prédios, numa tentativa de reconstrução, através da escrita, de uma cidade perdida em sua memória. Fortaleza é, assim, desenhada em suas ruas (Governador Sampaio, Carlos Vasconcelos, João Cordeiro, Costa Barros, Guilherme Rocha) e seus recantos (Santa Casa, Leão do Sul, Colégio Militar, Catedral, Galeria Pedro Jorge, Francinet Discos) prenhes de vidas e histórias para contar.

Em “A Fortaleza que poderia ter sido”, ele faz o leitor reviver figuras como Alba Frota e Virgílio Távora, bem como os Carnavais do Líbano, o jornal Correio do Ceará e as meninas do Colégio Imaculada. Nessa busca do passado, ele lamenta o fim de um ciclo da vida cultural da cidade com a destruição da casa de Alba Frota: “traduções de Dostoièvski feitas pela Rachel sob o olhar atento dos meninos do partido/Milton Dias falando de Valery/enquanto o piano inundava os ouvidos/ Venderam-na com todo mundo dentro (A casa de Alba)


Atento aos personagens da cidade, ele denuncia o mascaramento da prostituição infantil: “Ontem o gringo me ofereceu 50 paus pela fotos e mais 20 pelo fardamento escolar, garanto para o Sr. que ele não me tocou” (Pequena história de Adelita). A figura da prostituta, como a continuar a historinha de Adelita, aparece em “Irmã das almas ou o valor de cada um” e em “A espera”, na figura de uma Vênus que logo é a suicida Mariangeles, cuja espera inútil por aquele que a tiraria da vida leva-a a “explodir as têmporas”. Solução parecida com a do “grande guerreiro branco” que, derrotado pelo Alzheimer, é levado por uma linda Mãe d’Água e nunca mais foi visto pelas bandas da João Cordeiro (O estranho caso do homem da Governador Sampaio)

No encalço dos personagens que pululam nas ruas da cidade, há ainda o relato, tão lacônico quanto completo, da felicidade dos transexuais que realizam o sonho do cirurgia: “O corte entre as pernas transformou Jeremias em outro homem”; e a narração de pequenos flashes do cotidiano: “Depois de 16 anos de casados, ele trocou-a por uma negrinha adolescente. A dor foi tão intensa, que ela resolveu fazer terapia na Costa Barros” (Terapia), com uma sutileza que não isenta sua linguagem da extrema vigorosidade que possui.

Pequenos fatos corriqueiros transformam-se em notícia literária: “Armando de Castro, comerciante da Conde D’Eu, aplicou um pequeno golpe na praça e fugiu com a negrinha Joana sem avisar à família” (Pequenas transgressões II) e o humor parece ser a forma de sublimação das adversidades: “Ver o mundo de um só lado” (Paralisia facial)


Seu olhar agudo penetra, onisciente, os recônditos: Três senhores,em mangas de camisa/ saboreiam/sem que ninguém perceba/ a discreta T-shirt da moça ao lado/que guarda em silêncio/seu afeto pelo Moacir” e sua sensibilidade mostra a passagem do tempo com suas intempéries e benesses: “As sardas e o cabelo ligeiramente avermelhado cederam gentilmente o lugar às rugas e ao prestígio” (Vítor juiz).

Esses breves comentários mostram que, sem dúvida, Aldir Brasil Jr. está entre os mais produtivos escritores cearenses da contemporaneidade. O estilo fragmentado de suas narrativas curtas, a linguagem sutil, mas extremamente forte, são as marcas de uma escritura criativa e original nas nossas letras.

“Bolha de osso”: estética do inconcluso


A Literatura pós-moderna tem como uma de suas principais características o ecletismo. Há espaço para todas as tendências: tradição e modernidade dialogam sem problemas, os gêneros se entrecruzam, legitima-se a pluralidade. Parte da geração 90, especialmente a da prosa, tem abolido o discurso linear e investido na fragmentação do texto, modelo que vem de experiências anteriores como as de James Joyce, Virgínia Woolf e Oswald de Andrade, entre outros transgressores em sua época. A tradição permaneceu ao lado dessas novas invenções. Nelson de Oliveira, no prefácio da coletânea Geração 90 – os transgressores, falando desse assunto, convoca o leitor a “deixar de lado a conotação apenas positiva do termo transgressão e meramente negativa de conservação”. Confirma, assim, a ampliação dos espaços para todas as tendências, ao dizer que tradição e ruptura são “forças equivalentes, ambas trazendo no bojo cargas igualmente positivas e negativas”. A esse respeito, Bauman diz: “Os estilos não se dividem em progressista ou retrógrado, de aspecto avançado ou antiquado. /... / Todos os estilos, antigos e novos, sem distinção, devem provar seu direito de sobreviver, aplicando a mesma estratégia, uma vez que todos se submetem às mesmas leis que dirigem toda a criação cultural, calculada – na frase memorável de George Steiner – para o máximo impacto e obsolência imediata”.

Além da eliminação das fronteiras entre arte erudita e popular, clássico e moderno, da preocupação com o presente e do fragmentarismo textual, a geração de 90 mostra uma postura essencialmente individualista. Vivendo em um mundo sem norteadores para sua existência, ela parece voltar-se para si mesma, preocupando-se em criar o que parece lhe satisfazer. Quanto ao leitor... cabe a ele o desafio de encontrar (ou não) sentido nos textos. Não há, como assinala Bauman, projeção para o futuro, há uma tendência à transitoriedade, bem como à concisão, reflexo, talvez, de uma sociedade onde tudo deve ser consumido muito rápido e tudo é descartável. Inexiste, pois, na produção desses escritores, preocupação em serem entendidos ou vontade de radicar-se na história da literatura.

Jorge Pieiro, que iniciou sua trajetória literária no final dos anos 80, é assumidamente um experimentalista. Sua produção ora irônica, ora nonsense, ora surreal, é naturalmente malcomportada, fragmentada e, na maioria das vezes, hermética, insana. Seus livros são sempre considerados “magros cadernos de palavras”, exatamente por que não há preocupação com a extensão dos textos, tampouco com o número de páginas. São, entretanto, jogos de palavras densos, caudalosos que desafiam o leitor e, feito o mergulho, fazem sentido. Têm uma lógica, ainda que particular.

Ele acaba de lançar seu oitavo título, Bolha de osso, uma bem cuidada publicação, com o selo Edição do Caos, sedutora já na aparência. A obra se compõe de 69 contemas, como ele mesmo faz questão de designar. Contemas porque são contos curtos, ou ensaios para contos. Contos que podem também ser considerados poemas, prosa poética, enfim: contemas. O gênero é o que menos importa. Importa a força de sua palavra, sempre lacunosa, mas extremamente firme, certeira, construtora da estética do inconcluso. Sim, porque seus textos iniciam e logo findam sem terminarem de fato.

A obra começa, bem a Brás Cubas, com uma “quase advertência” ao leitor: “Sem iludir nem permitir falsa luz de obviedades, convém adverti-lo: prosseguindo, enrede-se e não se espante com desencantos. Daltontrevisanizo-me uilconiamente. Deixe-se, de sentir. Morrer é casulo. Liberte-se. Torne-se. Nesses textos-contemas salve-se em espírito de soluços. Procure tornar-se cúmplice de palavras, sábio. Verá que natureza e amor se fazem com inexatidões, perplexidades, alegorias e prenúncios. Se preferir, desista. Ninguém se quer mártir em folhas de papel”. O estilo JP é marcado a partir daí: desafio ao leitor, equilíbrio na inexatidão, influência assumida do curitibano Dalton Trevisan, leituras antigas e permanentes. Identificação. Também declaradas estão as leituras de Uilcon Pereira que, no dizer de Nilto Maciel, é escritor do século XXI, do futuro, o criador de uma nova literatura. De fato, JP, como Uilcon, corre um sério risco de se tornar um de seus insuspeitos personagens. Foi o Nilto que disse isso do escritor paulista, comentado que “em sua obra ocorre uma sobreposição de realidade, não se sabendo bem onde começa a ficção, onde existe a fantasia”. Digo o mesmo de JP. Seu espírito irônico e corrosivo transplanta muito da realidade para a ficção. Há arranjos cáusticos, outros bem-humorados, homenagens, pequenas vinganças até e há Ele na transversal de tudo.

No primeiro contema, “Prelúdio”, outra influência escancarada que vai perpassar toda a obra: Guimarães Rosa. A linguagem elíptica e inventiva reconta a história de Riobaldo e Diadorim, mais precisamente, o momento em que o jagunço descobre que o companheiro, então morto, por quem estivera apaixonado era uma mulher: “Enquanto desviei céu e olhar, vi longas barbas, era Miguelão desfazendo de cruz o sinal de ex-pranto. Vocês, atordoados, correram pelaí. O medo é uma corredeira. Eu engasguei na cantiga: - Asas de diabo mais compridas. No alto, Miguelão beijou Diadorim, enciumando Rosa entre as pernas de Riobaldo, que no meio de tanta dor repetiu o gesto” (p.13). A linguagem e o estilo são totalmente roseanos, como se comprova ainda em: “Longe dali, alguém se engoliu de cianureto. Débil. Cápsula de feliz morte, nele se desvivendo como sempre”. Note-se que em “Enquanto desviei céu e olhar” é a sonoridade quem dita o sentido: “Enquanto desviei seu olhar”. Rosa todo.

Há histórias nas histórias. Pode não haver a lógica tradicional. Ou ela pode estar velada: “Mania toma seu homem entre mãos, beija-o. Com o facão parte aquele principal em dois. E o dá a seus cães. – Isto é o corpo de nossa última aliança. Anoitece” (“Beijo de Anum”) - A mulher decepa o órgão sexual do marido e celebra a fidelidade então possível, como se consagrasse um corpo divino, qual o padre faz com a hóstia no altar. Assim se fazem todos os textos, sem digressões, explicações ou... conclusão. Anoitece. Que conotações partem desse verbo? Muitas.

Seus personagens são seres não-felizes, dilacerados, escassos de existência. É a dançarina assassinada na boate, é o mendigo que, na hora do amor, esquece a miséria: “Primeiro lambe-lhe a coxa alta e olho. Depois descem de dois até a arena. Íris conhece aquele chão. Ali ele esquece vontade, fome, mãos, pés” (“Kaletzip”); a prostituta sempre acompanhada e sempre só, o homem anônimo que anda na contramão do progresso, a mocinha seduzida, a índia despersonalizada, o macho devorador, vampiro, estuprador, o Marquês impotente, o velho tarado que se aproveita da ausência da mulher, o necrófilo. Muitas histórias de sexo contadas com humor, assassinatos e júris quase imperceptíveis... O sopro trevisaniano é muito presente, mas a linguagem de JP, cheia de metáforas (o sexo da mulher é a azeitona mordida, a hortaliça viçosa) e subterfúgios, uso consciente das potencialidades expressivas da língua, garantem um estilo próprio, ironicamente lacunoso, emprestando certa safadeza aos personagens masculinos que muito têm do Nelsinho d’O Vampiro de Curitiba, embora não seja essa a obra de Trevisan que mais esteja presente.

Oswald de Andrade e seu resgate do Brasil colonial aparecem na retomada da índia como ser explorado. JP a mostra seduzida pelo branco: “13 anos, quer mais sonhar não. Rapagão passeia mãos, corpo. Pensa: ‘Rapagão é Vasco da Gama’. Diz para ele cuidar de descobrir outros mundos. Rapagão gosta, danado. Sem fôlego, moreninha. Rapagão cruza fim de mundo. Cheio de especiarias retorna. Pensa: ‘Índias, melhor lugar de qualquer mundo’ (“Moreninha”). É inevitável lembrar Iracema, índia de José de Alencar que, no romance homônimo, é seduzida pelo português-colonizador Martin e depois desprezada. Em “Cara pálida” essa lembrança se explicita e concretiza-se na nominação: “/.../ Matar a índia. Diz primeiro, te amo. Depois arrebenta. Zíper abaixado. Mão de calo preciso. – Uhhh! Iraceminha!”. Observe-se a conotação do verbo matar e a referência ‘quase implícita’ a uma transa. Em “Crua”, esse ritual é simbolicamente antropofágico e a idéia é de violação: “Covarde. Alguém é covarde sempre. Cobre-se de Capuz e adentra. Há três mulheres vestidas /.../ Empurradas por outros dois, duas colocam capuzes, também. Obrigadas, devoram a gritos carnes de Tu”.

A JP o que conta não é o que conta. A forma como o faz é que importa. Seu hermetismo, às vezes apurado, como em “Longe de Arthur”: “Seis que um dia vieram dentro de mim. Seis. Sei o que sinto. Não sei, as marcas. Massas de mãos. Eu, Ninica, sei o que me trinca. Seis não dá em nada” deixa brechas para o leitor inferir ou atribuir um sentido ao que parece não tê-lo. Ninica pode ser a narradora ou a narratária. No primeiro caso, entrevê-se a lembrança de um estupro. No segundo, o narrador é um homem e Ninica é a narratária de seu discurso; “não dá em nada”, assim considerando, pode inferir a frustração de uma relação ‘trincada”, não mais possível. O que era já não é. As interpretações assim se fazem e, ao cabo de um percurso caudaloso, após fugir de tempestades e escapar de monstros marítimos, há terra à vista. O leitor deixa de ser passivo e constrói seu próprio enredo.

Jorge Pieiro é uma experiência prazerosa porque há o que ler. Linhas e entrelinhas. Textos e subtextos. No final, no contema 69, não despretensiosamente, “de frente, olho no olho”, e não no reverso, tudo dá em mar e... a Bolha de osso, tão dura de roer, vira um brinquedo para quem gosta de provar bem sucedidas experiências com as palavras. Sua literatura tem valor não porque é transgressora, de ruptura, numa época em que também se elevam os enredos tradicionais, que não descosturam a gramática nem fragmentam seus discursos, mas pela autenticidade de seu estilo, pela irreverência de sua postura como escritor e pela capacidade de manter-se novo dentro do que já não é.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998
MACIEL, Nilto. Uilcon Pereira, um Escritor do Século XXI http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=128&cat=Ensaios&vinda=S Acesso em 7/7/07
OLIVEIRA, Nelson de. “Transa Trans: Tributo às tribos extintas” In: Geração 90 – os transgressores. São Paulo: Boitempo, 2003
ROSA, Guimarães. Grande sertão:veredas. Ria de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
TREVISAN, Dalton. O Vampiro de Curitiba. 27ªed. São Paulo: Record, 2004

Publicado no Carderno de Cultura do Diário do Nordeste - 19.08.2007

Sintaxe do Desejo: Síntese da Poesia Visceral de Dimas Macedo

"Ânsia visceral de mim
que a face me estrangula..."
(“Espumas” p.42)

São raros os críticos que se mantêm fecundos produtores de textos literários. Dimas Macedo é uma das felizes exceções. Assíduo leitor, sobretudo da literatura local, escreve semanalmente um artigo sobre obras representativas, valorizando a arte de sua terra e levando ao público nomes muitas vezes desconhecidos. Sua disposição para a pesquisa, tanto na área do Direito quanto na da Literatura, rendeu-lhe publicações significativas que tiveram repercussão nacional: Lavrenses ilustres (1981), Leitura e conjuntura (1984), Ensaios de teoria do direito (1985), Lavras da Mangabeira – Roteiros e evocações (1986), O discurso constituinte (1987), Notas para a História de Alto Santo (1988), A metáfora do sol (1989), Ossos do ofício (1997), Tempo e antítese (1997), Martins Filho e Joaryvar Macedo (1998), A obra literária de Alcides Pinto (2001), Marxismo e crítica literária (2001), Crítica imperfeita (2001), Pesquisas de direito público (2001), A face do enigma (2002), Crítica dispersa (2003), Entrevista (2003), Décimas a Alcides Pinto (2003), Política e constituição (2003), Filosofia e constituição (2004), Bibliografia – roteiro para pesquisadores (2004), Ensaios e perfis (2004), A letra e o discurso (2006).

Como poeta, pode-se dizer que é um dos mais produtivos da literatura cearense contemporânea. Estreou em 1978, com Primeiros poemas, dois anos depois publicou A distância de todas as coisas, obra que marcou seu nome na história das nossas letras. Deu uma pausa para dedicar-se à carreira acadêmica e jurídica, e, em 1990, voltou à cena com Lavoura úmida; em 1994, lançou Estrela de pedra e, em 1996, Liturgia do caos. Mais uma parada, então para repensar sua trajetória, reeditou o segundo livro em 2001, e retornou em 2003 com Vozes do silêncio. Em 2006, ano do seu cinqüentenário, editou Sintaxe do desejo, uma coletânea que reúne seus mais antológicos poemas. Além de uma síntese de sua produção poética, esse livro é também uma celebração, um coroamento de sua trajetória (como poeta), quem sabe o fechamento de um ciclo.
Os textos selecionados representam um balanço do seu exercício na arte do verso, no transcurso dos anos de 1978 a 2003, marcos da publicação de seu primeiro e último livro (até então). O que se constata é a manutenção do mesmo universo temático e a estabilidade de seus procedimentos estéticos, sua criação consciente do texto como um trabalho de linguagem. Profundamente ligado às raízes, telúrico e sentimental, o poeta conserva na coletânea os principais poemas que louvam a cidade-mãe. “Lavras” (p.26) é o primeiro deles:

Longe daqui do tumulto,
lá no meio das coisas,
prostrada para o universo,
posto que existe,
Lavras é a cidade mais bela do mundo,
pois em cada rua
nasce uma saudade
que termina em meu corpo.

A exaltação da terra natal traz a voz de Drummond, em sua constante evocação de Itabira, mais ainda a de Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. (“O Guardador de Rebanhos”). É recorrente a crítica associar a poesia do Dimas à de Drummond, bem como à de Fernando Pessoa e seus heterônimos. A assimilação das leituras e a identificação temática e estilística está clara em “Ortônimo”, metapoema que norteia o espírito da criação macediana.

A última parte, ‘Dispersão’, traz ainda “Musa” e “Esfinge”, dois cantos de amor à sua Lavras, que, mais que cidade, é a imagem de sua infância: “Quando me lembro que nasci em Lavras, / a solidão de minha infância é tudo / e a expressão da existência é nada /.../ pois as ruas de Lavras são paredes/ que se atravessam em mim como uma ponte.” Essa força que o liga ao passado, como as inquietações diante da existência, leva-nos a Cacaso (em “Lar doce lar”) “Minha pátria é minha infância / por isso vivo no exílio” . Há no homem um menino que guarda inexoravelmente sua infância e vive exilado de si mesmo, procurando o eterno retorno a um tempo impossível. Daí as perscrutações existenciais, a inquietação metafísica tão constantemente revelada em sua poética, o saudoso recordar (“Elegia” p.36):

Lembro meu pai
apascentando estrelas
e solidões
em tardes douradas
e a minha mãe
na sombra do alpendre
e olhos no algeroz.

A saudade, os questionamentos sobre a vida, o amor, tudo se transfigura em poesia. Ele mesmo disse, em entrevista ao Diário do Nordeste, por ocasião do lançamento de Lavoura úmida, em 1990, que “a Literatura é um lenitivo para o intelectual exasperado, mas é um lenitivo para quem busca uma resposta para a vida”. Com efeito, sua poesia é visceral, sangüínea, sua mais segura forma de sobrevivência e busca, como se lê em “Palavras” (p.39):

Para me suportar
a mim mesmo me basto.
Para não me morrer de tédio
mergulho-me palavras.

A salvação do homem está na palavra. Sondando o enigma da existência ou levantando questões sobre o estar-no-mundo, o poeta lança um “Dilúvio” (p.30) de interrogações (aqui resumidas):

O que será esse mundo,
esses cosmos sem fim,
essa utopia?
Correm para onde, então,
essas filosofias?
/.../
Dai-me, Senhor,
conter em minhas mãos
o nada e o não-ser
e o desfazer de mim
a dor dessa introspecção

Na solidão dos conflitos, o grito de angústia é indagação do mistério. O poeta pede a ajuda divina para livrar-se da dor de existir. A fé nesse Deus que “muda de residência”, mas “carrega a nuvem de seus passos”, é que o ajuda a “viver sozinho no deserto / buscando o amor / sentindo a esperança” (“Escudo” p.110).

Em “Enigma” (p.66), é o tempo sua clausura. O vento, elemento do efêmero, aparece, em sua poesia, personificado. Se ele é a calmaria do tempo-espaço fundidos, é também seu confidente e cúmplice: “no centro da alma / há um castelo / no qual escuto / as confissões do vento” ( “Ânsia” p.79). A angústia diante do fugaz, bem ceciliana, é uma herança simbolista, e remete à busca de integração no cosmo, desejo de transcendência. Esse sopro simbolista está, inclusive, nos efeitos sonoros dos primeiros versos de “Metáforas”(p.46): “Ó cochas, ó conchas, ó formas”, onde se ouve claramente um sopro de Cruz e Souza, motivo do poema “Poeta”, de Vozes do silêncio (p.14): “João da Cruz e Souza: / eis o meu nome./Tenho a alma clara/ e de cintilações / é feito meu destino”.

A ansiedade de saber-se ou encontrar os sentidos da vida leva-o ao conflito existencial:

Porém a ânsia que sinto
é um conflito
muito maior
que a nave da existência.

A saída é a fé, como vimos no clamor ao Pai, ou a arte:

O mito de toda a existência é sempre a arte (“Lavragem” p.37)
A arte: minha suprema realização (“Diário” p.44)

A Literatura, sua arte por excelência, sem dúvida, é seu alento maior, como ele mesmo declarou em entrevista ao jornal O Povo, em outubro de 2006, na véspera do lançamento de Sintaxe do desejo:

“A literatura existe para substituir a vida, porque a vida por si mesmo não se justifica. A arte justifica a vida, porque a vida precisa ser reinventada e ela é reinventada fundamentalmente pela palavra. A palavra cria, a palavra transforma, a palavra liberta”.
Exercitando redondilhas, sonetos ou versos livres, Dimas mostra sua preocupação com a morte, mas não a coloca como centro de sua poética, talvez porque entenda que “O aprendizado da morte é a existência /.../ (e) o sentido da vida é a suspeita de que a morte é a simetria de (sua) liberdade” (“Poética” p.68). É ainda o amor o seu estro, uma vez mais e sempre, celebrado de forma silenciosa, platônica:

As horas,
um amontoado de saudades,
minha idéia a encontrar-te
é como uma voz interior a ter-te.

Mas é irreal,
e o meu sonho, um sonho,
fundido com a minha angústia
como uma tarde sem horizontes.

Esse amor-falta, em outros versos, adquire carnação e torna-se erótico, até dionisíaco. Em “Banquete” (p.45), poema demais sensorial, há um rito na consumação do amor:

Entre ostras e pêssegos eu bailo
e bêbado
beijo o frutal de tuas algas.
entre aspargos e vinhos
advinho o apelo de teus lábios.
/.../
E te possuo entre ostras e aspargos.
Entre vinhos e pêssegos eu te consumo
e te presumo mar absoluto e furioso.

Igualmente ocorre em “Frutos” (p. 81), poema sensual e bastante sugestivo:

A carne é fraca
e os frutos
maduros
são ditosos.
Apetitosos
os seios de Aline
na varanda
e as rosas brancas
no corpo de Marcela.

O amor-erótico se espraia em forma de desejo, no poema “Concha” (p.28): “Quero a louca / lâmina / da minha fantasia/ pastando no teu sexo” e se plenifica em “Casulo” (p.52), a mais bela peça romântica do livro:

Te amo sobretudo os lábios
e a resina viscosa dos teus seios,
pois a vulva dos teus olhos enlaça
a sedução invisível dos meus pelos,
onde começo a viver e me embaraço,
porque me mato de amor quando te vejo.

Já em “Ausência” (p. 69), o poeta recusa o amor-sofrimento e celebra o amor-vida, confirmando a doação plena e o desejo de felicidade:


Não. Eu não me quero o suicida
que despenca do alto da torre.
Eu me quero vida para te ofertar rosas
e te colher a plenitude de espigas maduras.

Dimas tem a poesia como o sentido de sua vida, a poesia visceral e sangüínea, costurada com a alma. Evocando a infância ou suas raízes, procurando a lógica da vida ou indagando sobre os enigmas que a cerceiam, refletindo sobre o processo criador ou reinventando-se na ‘tessitura do caos’, lembrando a morte ou celebrando o amor, ele sintetiza seu percurso poético no trajeto de seus 25 anos de poesia, reafirmando seu talento para as letras e fazendo o coroamento de sua maturidade estética e ontológica. Resta-nos a pergunta: se Sintaxe do desejo fecha um ciclo existencial, o que virá agora? Conhecendo o poeta, arrisco uma resposta: a reinvenção (inclusive do novo), porque ele sabe, como Cecília Meireles, que “a vida, a vida, a vida... só é possível reinventada ”. Também a poesia!

"A Leste da Morte": veredas diversas e apurado trabalho de linguagem


Quando se fala na ficção cearense contemporânea, o nome de Nilto Maciel desponta como um dos mais prodigiosos. Não à toa. Sua estréia, em 1974, com Itinerário (livro de contos) já marcou a chegada de um escritor maduro no cenário literário, cujas fronteiras alargaram-se com sua mudança para Brasília. Mesmo longe da terra natal, ele se manteve ligado às raízes, embora sua produção nada tenha de regionalista. Sua visão de mundo é sempre universal. Inquieto, ele exercitou outros gêneros, como o romance, a novela, a poesia e o ensaio, confirmando seu domínio das palavras, nas obras que se seguiram: Tempos de mula preta (contos, 1981), A guerra da donzela (novela, 1982), Punhalzinho cravado de ódio (contos, 1986), Estaca zero (romance, 1987), Os guerreiros de Monte-Mor (romance, 1988), O cabra que virou bode (romance, 1991), As insolentes patas do cão (contos, 1991), Os varões de Palma (romance, 1974), Navegador (poemas, 1996), Babel (contos, 1997), A rosa gótica (romance, 1997), Vasto abismo (novelas, 1998), Pescoço de girafa na poeira (contos, 1999), A última noite de Helena (romance, 2003), Os Luzeiros do mundo (romance, 2005), Panorama do conto cearense (ensaio, 2005) e A leste da morte (contos, 2006). Senhor das técnicas das narrativas curta ou longa, em todas as obras ele mostrou fôlego e talento, e afirmou-se como um dos mais produtivos ficcionistas brasileiros da nossa época.A leste da morte (Porto Alegre: ed. Bestiário), sua última publicação, é um livro volumoso, composto por 47 contos. Às vezes leves, às vezes mais densas, suas histórias percorrem um universo temático bastante amplo. Seu processo criador, visivelmente consciente, foge do experimentalismo, mas não se enreda na tradição. As frases curtas e o discurso sutilmente fragmentado são visíveis em praticamente todos os contos, especialmente em “O livro infinito”, conto com vários blocos narrativos intercalados, nos quais um mesmo narrador, em discurso indireto, mostra o pensamento dos três personagens que formam o triângulo amoroso: dois escritores e uma moça apaixonada por livros. Eles vivem uma história sem fim, entre livros, visitas a livrarias e inúmeras indagações sobre os sentimentos e atitudes do outro.Também a forma como tempo e espaço se delineiam em alguns enredos não é tradicional. Em “Trem fantasma”, por exemplo, os planos temporais e espaciais são bem escamoteados e o leitor que, no princípio, vê o maquinista tentando deter o trem, descobre o homem/menino só brincando... aparentemente tão simples, mas tão bem construído que o leitor se enreda na brincadeira. A confusão temporal e espacial também se dá em “Paisagem celeste”, cujo protagonista, um homem cansado da rotina adversa, foge para a serra e acorda em seu quarto. A realidade ficcional se funde à atmosfera onírica (pesada) que se revela no final.O mundo alucinatório do homem contemporâneo se delineia em vários momentos. “A fila”, narrativa que ironiza o excesso de filas para todos os serviços procurados, traz à cena o atordoamento ante o tumulto que se forma quando para todos os lados que o personagem se volta encontra a impossibilidade de resolver o que pretende, inclusive de dialogar com as pessoas (que parecem estar concorrendo com ele). Em “Sombra não identificada”, o protagonista, perturbado com a avalanche de más notícias dadas pela TV, escuta o anúncio de sua própria morte. Já no enredo de “Restos de feijoada”, a morte do folião é a impossibilidade de aceitação dos limites: ele prefere morrer brincando na festa de carnaval a padecer doente entre os lençóis. A ironia está no vômito final: o expurgo do inaceitável é escatologicamente metaforizado na (indigesta) feijoada. E assim vão desfilando situações comuns, casos sobretudo urbanos (Fortaleza, Brasília, Palmas... o mundo) em que se sobressaem injustiça, pressa em arranjar culpados (“A Leste da morte”, “O último troiano”), malandragem (“O descanso do criador”, “Mundoca e Mundico”), crianças perdidas dentro de sua própria casa, sem a atenção dos pais (“O invisível Isaías”), loucura ("Aníbal e os livros”), falta de memória do povo para reverenciar ‘heróis’ do passado (“Maneco, futebol e cerveja”), opressão (“Mancha na parede”), enfim, um universo de problemas banais transplantados do mundo real.Há uma ironia velada na voz de cada narrador; em “Livre-Arbítrio”, ao associar-se a punição de um assassino aos ensinamentos bíblicos, são os preceitos religiosos o alvo de alfinetadas. A religião volta a ser ‘moral da história’ em “Caça e caçador”, na mesma perspectiva de questionamento quanto aos valores pregados. Em “Mancha na parede”, a decisão da reclusão no mosteiro simboliza opressão e sofrimento; em “Caim e Abel”, os pólos se invertem: o bom vira assassino e o mal transforma-se em vítima, como a representar a inversão de valores que hoje se presencia.O discurso literário muitas vezes cede espaço ao relato jornalístico, imprimindo ao texto um estilo-reportagem, a exemplo de “Maneco, futebol e cerveja”: (morreu ontem Maneco, ou Manuel dos Santos Pereira. Há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna) e “Para que esses olhos arregalados?”, conto que intertextualiza, de passagem, o clássico Chapeuzinho Vermelho e tem um final inesperado, como, aliás, a maioria dos que compõem a coletânea.Já “O perdão” e “Águas de Badu” investem nos diálogos com textos consagrados na literatura brasileira. O primeiro retoma “Os anões” do Moreira Campos, redimindo a pequena Lourdinha do trauma do assédio nojento dos assaltantes que invadem o armazém em que ela mora com seu parceiro. A influência de Campos é assumida neste enredo e se mostra no estilo hiper-realista de “Os urubus e Deus”, narrativa cruel, que lembra os relatos naturalistas do romance A fome, de Rodolfo Teófilo. É também moreiriano o início de “Águas de Badu” - “Moscas voejavam ao redor do cadáver” – recriação da história de “O burrinho pedrês”, de Guimarães Rosa. O narrador, um cronista grato pelas histórias sertanejas que Badu lhe passava, conta a saga do velho vaqueiro de Sagarana, após deixar Minas até chegar ao Ceará com as lembranças da travessia do rio, quando ele, bêbado, foi salvo pelo burrinho. Entre as reminiscências do passado mineiro de Badu e sua morte, dormindo em casa, dá-se o velório e, no final, vê-se o carinho do cachorro Chué que, na imaginação de um menino, lambe o cadáver, em despedida, metamorfoseado no burrinho herói do conto épico de Rosa.Há a mão do ensaísta em “Lilith segundo Paspa Tordre” e “Para escrever A caminho do nada”. A literatura está toda no processo criador; Nilto cria, acho que até sem perceber, personagens que são leitores, escritores, amantes dos livros, da poesia, como a velha Bartira (“Hora de despertar”), paralítica que sobrevive, ouvindo poemas de Anacreonte, Bilac, Camões, Francisco Carvalho e Florbela Espanca. Morre sozinha quando as leituras param e seu filho, ainda na farra, esquece-a aos cuidados de um ‘gravador’.O gênero Fantástico se configura em “O menino e o lobo”, “A música”, “Sombra não identificada” e “O sétimo aniversário de Branca de Neve”. Nos três primeiros, o fantástico parece naturalizado, sem a inserção do mal; no último, a atmosfera é mais pesada e o que poderia ser simplesmente uma história do Maravilhoso degenera-se na inexplicabilidade do evento final: a brincadeira do teatro vira ‘verdade’ e a bruxa se corporifica, arrancando medo de crianças e adultos, à meia-noite.O Surrealismo se faz presente em “Os dez dias de Raimundo”, cujo personagem, um homem criado em laboratório, tem seu ciclo de vida iniciado e concluído em apenas dez dias; na mesma linha está “Palmas e tochas”, história em que o pianista é, estranhamente, aos olhos de um expectador, um Lobo. Nada de automatismo na linguagem, apenas os motivos das narrativas transpõem a lógica natural, sem, entretanto, encenarem mistérios inexplicáveis.Assim, fundindo observação, memória e imaginação, vários enredos dão ao leitor a ilusão de verdade; em “Apontamentos para um ensaio” e “Meu filho Matias Beck”, especialmente, ouve-se a voz do autor nos relatos, e chega-se a crer que são reais. O equilíbrio está no talento de Nilto Maciel para amalgamar realidade e ficção. Munido de vasta bagagem de leituras e domínio das técnicas de construção do texto literário, ele percorre veredas diversas e, com seu apurado trabalho de linguagem, dá unidade ao que é diverso, puxa o leitor por caminhos inusitados e consegue, sem exauri-lo no longo percurso que se impõe da primeira à última página, prendê-lo espontaneamente ao universo de seres alucinados e fatigados de sua aventura existencial. Sem falseamento da realidade, mas sem exatamente copiá-la, ele fala, na maioria das vezes ironicamente, das feridas abertas de todos os seres extraviados que, de alguma forma, encontraram-se, encontram-se ou encontrar-se-ão a leste da morte.

Batista de Lima: entre a pele e os abismos da palavra

Apresentação do livro Pele e abismo na escritura de Batista de Lima, de Nilto Maciel

É sempre importante saber o que diz a crítica sobre um livro. Vê-lo desbravado pela argúcia de um olho atento a descobrir-lhe o cerne ou inventar-lhe uma alma. Ter uma trilha por onde andar, antes do escorrego, ou ter onde segurar. Os textos críticos são esse porto seguro de vozes sensatas que indicam caminhos, atalhos, provocam o leitor ao mergulho. Os livros de Batista de Lima tiveram o privilégio de atraí-los, despertaram a atenção de críticos e estudantes, motivaram leituras, seus versos ganharam a rua, sua prosa deu o que falar. Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima veio mostrar que a sua produção literária, como a científica, não estancou nas prateleiras, tampouco passou despercebida; veio confirmar o interesse dos que leram e atravessaram a epiderme da sua palavra para abismarem-se nas linhas e entrelinhas da sua escritura. Nilto Maciel, leitor e crítico de seus textos, estabelece intersecções entre o poeta, o ficcionista e o ensaísta (Batista de Lima), não enxerga cada gênero isoladamente, entende-os ligados por uma linguagem sempre poética e particular. Diz que o poeta dá a mão ao narrador e ambos caminham de cabeça erguida no vasto mundo das letras. Foi esse Nilto, com sua alma de ficcionista e pesquisador do texto literário, quem, criteriosamente, reuniu os melhores textos sobre a obra batistiana e presenteou-lhe com esta Fortuna Crítica.

O livro se divide em quatro partes. Na primeira, temos a palavra do organizador que expõe como finalidade primeira da obra a fonte de pesquisa para os estudantes de Letras. Às suas palavras, segue um poema de Yacilton Almeida, uma biografia resumida e o discurso que o prof. Linhares Filho proferiu, quando da posse do conterrâneo lavrense na Academia cearense de letras, ressaltando a qualidade do seu trabalho em todos os gêneros execitados e prenunciando a perenidade da sua escritura, então imortalizada pelo seu destino de acadêmico. Segue-se com uma entrevista concedida ao Nilto, para a Revista de Literatura (2004), em que o contemplado fala de sua vida, sua trajetória literária, suas influências, seu processo criador, e seu ofício de amante das letras.

A segunda parte reúne textos críticos sobre as obras poéticas, iniciando com o Dias da Silva falando para os leitores do Jornal Tribuna do Ceará, em 1975, sobre sua auspiciosa estréia no gênero poético, com Miranças, e assinalando sua busca persistente por uma poesia concisa e densa. Adiante, Os viventes da serra negra, Engenho e Janeiro da encarnação vão ganhando matizes nas análises de Dimas Macedo, Francisca da Paz Menezes Carvalho, José Alcides Pinto, Sinésio Cabral, Joaryvar Macedo, Francisco Carvalho, Edimilson Caminha Júnior, Pe. Antônio Vieira, Deusdedith Souza, Barros Alves, Aldenor Aires, Carlos Augusto Viana, Francilda Costa, Giselda Medeiros, Nilto e Dias. De longe, Luiz Rufato e Akemi Waki ligam a sua poética à voz do seu povo, reiterando a voz de nossos melhores críticos sobre sua temática social, humanista, sobre seu lirismo vezes memorialista vezes filosófico, sobre sua forma de conceber o poema, como um processo de fusão entre inspiração e transpiração. Poeta da síntese e das elipses, como adverte Dias, Batista não peca pelo excesso ou pela falta, tem poder de concisão e consciência do uso da palavra como um trabalho de linguagem, embora não desprovido de emoção.

O contista é o objeto de estudo dos ensaios da terceira parte do livro, que reúne textos sobre O pescador de Tabocal e Janeiro é um mês que não sossega. Destacam-lhes características como o humor, o picaresco; classificam-nos como regionalista, realista, memorialista; estudam-lhes as metáforas. Em tudo fica evidente que o seu processo criador é múltiplo: ele junta memória e observação a um espírito imaginativo prodigioso. Suas histórias nascem de “causos” ouvidos, vividos ainda menino ou já adulto, que ele recorda e transforma em ficção. Estudantes de letras e críticos literários desnudam-lhe a essência: Nilto, Karla Paiva, Catarina Lobo, Arthur Eduardo Benevides, Dias, Delênia Holanda, Jaqueline Bastos, Herivaldo Oliveira Rocha, Elder Freitas Vidal, Renia Bezerra, Elisabeth Ávila Silva, Jorge Tufic, Graças Müsy, Larissa Pelúcio, Ângela Gutièrrez, Luiz Nazareno Magalhães, Wesclei Ribeiro. A prosa de Batista é declarada, em voz uníssona, como concisa, simples, mas extremamente expressiva. Com efeito, quem o lê sabe que ele transita pela temática regionalista, pela crítica social e política ou pelo fantástico, com a mesma desenvoltura, sem perder-se na construção do gênero, nem distrair-se de seus elementos constitutivos, embora, como diz o Nilto, perceba-se claramente o poeta de mãos dadas com o prosador.

Na terceira parte, temos o ensaísta percuciente, a voz do leitor atento (e do professor) avaliada por profissionais de letras que lhe apontam a capacidade analítica para o texto literário. Parece-lhe perfeitamente fácil conciliar a posição de poeta, ficcionista e crítico. É o que afirma Vianney Mesquita e Costa Matos ao comentarem as obras Moreira Campos: a escritura da ordem e da desordem, pesquisa de sua dissertação de mestrado, e Vazios repletos, ensaios que contemplam escritores brasileiros e estrangeiros, num registro do seu interesse por uma diversidade de gêneros e estilos. Aliás, o título trai o poeta: “vazios repletos” é uma antítese sugestiva, rica em conotações. Célia Felismino e Giselda Medeiros destacam-lhe, ainda, o interesse pela literatura cearense em O fio e a meada, coletânea de textos críticos sobre escritores de nossa terra, sobretudo os contemporâneos.

Pode-se perfeitamente, com este Pele e abismo, aquilatar a dimensão que a obra de Batista de Lima tem para a literatura brasileira. Nilto Maciel, com esta publicação, não apenas facilita a pesquisa acadêmica sobre o texto batistiano, desperta-nos para os muitos “josés” que moram neste Batista, homem simples e complexo em seu poder criativo, que ainda se acha “panos poucos para vestir tantos abismos”. Parabéns ao Nilto por dignificar a literatura cearense com esta obra que, certamente, constituirá uma fonte de pesquisa para os tantos que ainda se aventurarão pela palavra de Batista de Lima, buscando na pele de cada uma, abismais e abissais expressividades!

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Fulgurações de um sol intemporal

A partir do título, “O Sol de cada coisa”, já se entrevê, nos poemas desse novo livro de Batista de Lima, um raio de luz a perpassar, como se fosse a claridade o estro de sua criação, mesmo que imersa na dualidade própria da condição humana. Com uma profunda crença na vida e no amor, o poeta acende com as palavras a luz, invisível aos olhos comuns, que subjaz em tudo. Ele mesmo diz em “Clarescuridão”: Deus me fez / sombra e claridade / sombra que ilumina trilhas / claridade que me cega o dia, relativizando o olhar e o que lhe chega através dele - sombra / iluminação, claridade / cegueira - de forma antitética. Esse jogo do claro / escuro, herança barroca, no poema “O domador de relâmpagos”, aparece potencializado em um processo sinestésico, quando o eu lírico encontra um arco-íris nos olhos da moça triste e se vê imerso numa “clarescura ventania”.

Sua poesia, ora perscrutadora da própria existência, ora amorosa, ora telúrica, ilustra bem a condição do homem contemporâneo diante da multiplicidade de “Faces”: Há dias à noite em que pareço a manhã que virá, e enxerga, nele mesmo, um outro a espreitar-lhe como um “Vigia”: Até dormindo / há sempre um olho / que pesa sobre meus sonhos. Sua constante consciência do estar no mundo e de ser outro constantemente não impede que ele se surpreenda com o inusitado: Há um José que se esconde dos que carrego. Percebe-se, nestes poemas, a voz do poeta Affonso Romano de Sant’ana: Debaixo de minha pele / alguém me olha esquisito /pensando que eu sou ele, num diálogo que confirma o dilema do homem de nossa época, fragmentado e perdido em sua incompletude. O duplo se lhe apresenta como uma tentativa de completar o que lhe falta e está fora do seu alcance.

A presença da terra deixada, mas trazida, retoma o mito do eterno retorno em “Constatação II”, quando o sujeito poético diz ter transcendido a ausência física do lugar amado, numa declaração de amor à terra natal da qual se encontra exilado. Esse exílio, entretanto, é apenas físico; ele já não mais tenta, nas despedidas, levar os potes ou o alpendre, símbolos do apego à raiz sertaneja, já não acena para o engenho (metonímia expressiva, que mostra o aceno para todos o que fazem parte daquele universo); ele se apercebe de que nada fica, quando ele parte: Nas outras fui esquecendo despedidas / Pois finalmente descobri / que todos iam comigo / onde quer / que eu pudesse ir. No poema “Descobrimento”, também percebemos a inevitabilidade de seu exílio e a predestinação para assenhorear-se dum mundo vasto, que o horizonte (do Taquari(?)) não seria capaz de alcançar:

Meu pai trouxe o mar
para casa
prisioneiro de um grande búzio
E no alto sertão
Instalou as caravelas
Com que descobri o Brasil.

Foi na casa do pai, e pela mão dele, que o mundo lhe foi apresentado; foi de lá que partiram as caravelas que o fizeram filho da terra, mas senhor do mundo, cujas distâncias geográficas não podiam ser mensuradas.

Sua poesia amorosa não incorre em pieguice ou excessos; é comedida, embora os sentimentos não estejam disfarçados. Há confissões de amores plenos, mas quase sempre idealizados, como se vivê-los fosse o risco de perdê-los. Em “Desassossego”, o sujeito poético concebe o amor como forma de superação da enfermidade que é a vida e como modo de abrandar seu crepúsculo. Clama à amada que chegue, pois está preparado para recebê-la: Abre-te pois em portas / que estou de chegada. Entretanto, ele não pede o amor dela para vivê-lo, pede apenas a ilusão de tê-lo: envenena-me de esperança / iludindo-me / a cada instante. Nos últimos versos, temos a confirmação do que dizemos:

Mas não deixa no entanto me achegar
conserva-me ao longo e enfermo
de paixão, loucura e mal-estar
para que eu morra
de viver me estranhando
por saborear-me em ti eternamente

Bem ao estilo romântico, o poeta parece realizar-se com a distância de sua musa. Chegar perto, possuí-la, talvez significasse o fim do amor. O modo de tê-la eternamente é não se achegar, mas manter-se ao longo enfermo de paixão, loucura e mal-estar. O mergulho no sentimento se dá em “Amar”: Amar é... nadar quando o outro se faz lago, mas, qual Sílfide, a vaporosa dama mitológica do ar, a mulher aparece digna não da vida, mas de um altar para imolação e tem a voz copiada dos anjos. Em “Sangria”, há uma gradação perfeita, bem nos moldes da “Cantiga pra não morrer”, de Ferreira Gullar: na condição da partida da amada, o sujeito lírico desvela seus lamentos e chega ao ápice na estrofe final, quando pede que ela deixe pelo menos a possibilidade de ele morrer de saudade.

O tempo, com seu efeito corrosivo, é outra presença constante nos poemas. O eu lírico, em “Contatação I”, reclama dos anos que chegaram sem aviso... um a um com suas fomes / comeram nossas ternuras / por não termos fechado as portas. Esse sopro Maiakovskiano, do acontecido por permissão, confirma suas leituras e influências que se estendem a Drummond e sua máquina do mundo (“O domador de relâmpagos”); a Cabral, com sua lâmina só gume (“Lição”) ou no galo despertando /.../ no espreguiçar da manhã (“Mira”). Ou ainda Bandeira: Não era um homem / não era um bicho / era o mar / tornado areia (“Maré baixa”).

Já em “Momento”, a passagem do tempo não é dolorida, ao contrário, é esperada e até bem-vinda: Assim sem pressa vou ficando ao largo / não me canso por me tornar idoso / antes idoso que virar saudade. Subtende-se a aceitação da maturidade e o medo da morte, que é, depois, desafiada: A mãe terra tem fome de mim /.../ só não sabe a mãe terra / onde poderá guardar / esse explosivo lixo que carrego / esse cismar que vai comigo (“Desafio”). Outro diálogo se dá, desta feita, com Quintana, que, em sua “Confissão”, diz: Acho-me relativamente feliz / Porque nada de exterior me acontece... / Mas, em mim, na minha alma, Pressinto que vou ter um terremoto!". Nova dualidade se faz: a do jogo aparência/essência. Mas o tempo é mais saudade, não uma saudade doída, mas a marca de uma ausência, de uma falta que habita: Que tempo bom era aquele / redes virgens na varanda / tapioca no fogão / dente de ouro na fresca / barulho de faca em feira /.../ e minha mãe na janela / pilando pimenta e lágrima / batucando um pilãozinho (“Uma casa só portas”).


Sua ligação com a terra se dá num continuum entre cancelas e caminhos, potes e alpendres, quando o eu poético se sabe “tábua, ripa e caibro”. Vozes se entrecruzam: a mãe, o pai, o avô, a avó (que, eufemisticamente, amanhece viúva), o engenho, a casa e suas histórias. Essa ligação com as raízes se revela tanto no conteúdo de alguns poemas, como na linguagem e na própria forma: “Tulipa”, por exemplo, é um pequeno cordel (quase épico) que conta uma história de amor malsucedida. “BR-116” é uma mini-epopéia nordestina, uma viagem contemplada pela janela do ônibus durante um trajeto pela estrada que liga Fortaleza a Lavras, mas é, sobretudo, uma viagem pelo ritual do ir e vir: a cadeira onze na ida / e a vinte e sete na volta; há também um lamento pelas perdas oriundas do progresso: Esta BR apunhalou o coração de minha terra / passarinho voou voou / nas asas do seu medo próprio. / BR 116 / cadê minha galinha pedrez / o canto da curicaca / a flor de manjericão...

A metapoesia, presença constante a mostrar a preocupação com o fazer poético, atinge o ponto mais alto n’”O domador de relâmpagos”, quando o eu lírico diz que a poesia é dama desnuda / que se veste de poema e mostra o também duplo processo criador: O poema vem sem pressa /.../ tenho caçado palavras / como quem caça veredas, deixando confessa sua criação como misto de inspiração e trabalho cerebral.

Batista de Lima é, na concepção de Schiller, um “poeta sentimental”, pois “pratica uma poesia de caráter reflexivo, filosoficamente comprometida com seus próprios meios de expressão e realização”. Neste novo livro, sobretudo, ele filosofa, silencia, perscruta, recorda, celebra, faz declarações de amor, brinca com as palavras, seduze-as, apascenta-as e confirma seu nome na poesia cearense contemporânea. Suas múltiplas vozes não apenas domam os relâmpagos, mas acendem as luzes intemporais do sol invisível de cada coisa e abrem portas para celebrar a vida!

Um olhar sobre "Eu vou esquecer você em Paris"


"Eu vou esquecer você em Paris", de Carmélia Aragão, é um dos livros mais leves e, ao mesmo tempo, dos mais fortes que li ultimamente. Percebe-se logo o manejo da técnica da narrativa curta e da linguagem sóbria, sem rodeios, por vezes propositalmente elíptica, ora coloquial, ora formal, marcando a diversidade de personagens, enredados em seu universo urbano quase sempre trágico. Os textos são curtos, enxutos, concisos, mas densos.

Na maioria dos contos, há um olhar perscrutador a vasculhar os arredores, um olho nem sempre discreto em busca da vida do outro, em busca do circunstancial para transformá-lo em matéria literária, o que mostra o caráter também metalingüístico da obra.

Os personagens, quase sempre da área de Letras, mostram a mundividência da autora enraizada na criação, o que garante a verossimilhança já que ela se apropria, na ficção, de um mundo sobre o qual tem muito conhecimento. A literatura está toda entranhada em seus enredos: O Morro dos ventos Uivantes, de Emily Brontë; Miss Dalloway, de Virgínia Woolf, Dostoievski, Edgar Allan Poe, Goethe, Nabokov, Baudelaire, Kafka, Dante, Clarice Lispector. As referências aparecem naturalmente, obras e autores da literatura universal fazem parte do universo de seus seres fictícios. Há claro, um empréstimo das preferências da própria Carmélia, leitora madura no exercício de sua paixão.

O primeiro texto da coletânea, “Romance russo”, é a história de um assassino urbano e tem como pilar um romance de Dostoievski. A partir dele, vai se moldando a galeria de personagens que povoam as outras 14 histórias – seres citadinos em eterno conflito com o mundo e/ou consigo mesmos, por conta da avalanche de conhecimentos que a educação requer, da automação da rotina fatigante (Janto, tomo banho, faço café e me abrigo madrugada adentro. Morfema, epzeuxe, biomassa, rendimento, polinômio /.../ Há um escritor chamado Goethe, Nabokov, Baudelaire, Kafka, Dante... /.../ Existo, estou além desse quarto. Sou o princípio – “Holometébulo”). Encontros e desencontros, mediocridade, jogos de interesse (“Quase”), medo (Numa noite sonhei que alguém entraria em nossa casa e nos metralharia, a mim e ao meu marido. Vingança. Vingança porque estamos com medo da cidade, então a cidade entra dentro de nossas casas – ”Feliz Catus”) e solidão são vivências e experimentos constantes a tornar o homem cada vez mais distante do outro e até de si. Em “Crônica do 2º andar”, há o desabafo da vida solitária nos apartamentos, as pessoas se olham, mas não se vêem; vivem sob o mesmo céu, sob o mesmo “abismo de gases”, mas distanciadas pela rotina, pelos receios, pela vida.

O ponto alto do livro é o conto “2003 (Carmina)” - a perfeita fusão da realidade/ficção (e da ficção dentro da própria ficção) cria um mistério kafkiano. Aliás, o mistério é um dos principais fios condutores de alguns enredos, como os de “Pulsos intactos”, “Página 12224” e “A menina que tinha gatos dentro de si”.

O último conto, que dá título à obra, é aparentemente cruel. O relato, que fala do descaso do filho com a mãe, ilustra a desumanização do homem contemporâneo, que não se prende nem mais aos laços sanguíneos. A personagem-narradora, para vingar-se da perversidade do irmão, que a responsabiliza pelos cuidados com a “pobre mãe doente”, leva-a a Paris, com uma ‘mala cheia de jóias’, alvo da cobiça do ingrato, e a abandona lá: “/.../ foi no aeroporto, não tive pena, ela lá, pobrezinha,... Chorei... Chorei... Eu olhava da janela e ela lá, a mala com as jóias dentro. Foi como se eu me livrasse dele, do meu irmão, como se eu o deixasse sozinho, ainda criança, numa rua deserta e desconhecida, como se eu o esquecesse para sempre em Paris”.. Há certa ambigüidade no termo “pobrezinha”: é a mala ou a mãe o objeto de seu abandono? A crueldade, entretanto, desaparece quando percebemos que é a mala, onde ela escondeu “um par de abotoaduras de ouro, um colar de brilhantes e uns anéis” que ela deixa em Paris, como se deixasse o irmão ainda criança. A perversidade ingênua da moça mostra que a perda material, certamente, representaria um desastre muito maior que a perda da mãe para o filho.

São esses seres desestruturados, solitários, massacrados pela vida, que compõem o universo da criação de Carmélia Aragão. Ela consegue, entretanto, não impregnar suas histórias de pessimismo; há um laivo de humor a perpassar os densos fios de sua ficção, a seduzir o leitor e enredá-lo numa prazerosa viagem, não a Paris, mas ao mundo de sua prodigiosa criação literária.

"Fortaleza Voadora": Um canto de amor às avessas

Fortaleza voadora é o mais novo livro do escritor cearense Pedro Salgueiro que, após quatro volumes de contos (O peso do morto, O espantalho, Brincar com armas e Dos valores do inimigo), estréia no gênero crônica. A cidade é a temática recorrente, como o título prenuncia, mas não a bela “loura desposada do sol”, como celebram os versos de Paula Ney. Pedro faz, sim, um canto de amor, mas às avessas. Embora se perceba, através das epígrafes do romance A Normalista, uma adesão ao espírito crítico de Adolfo Caminha a Fortaleza provinciana do século XIX, (quando o autor, ferido com o julgamento dado a ele pela sociedade cearense, vingou-se sagazmente através da ficção), lê-se, nas entrelinhas das crônicas de Pedro, mais um lamento do que propriamente uma zombaria. A primeira crônica parece trazer a voz de uma criança magoada porque não foi convidada para a festinha. Ou a de um marido que diz odiar a esposa só porque foi passado para trás. O que o narrador odeia é tudo o que ele nunca experimentou, conhece por ouvir falar; é tudo o que ele queria que fosse diferente, mas não pode mudar. Ele não segue a máxima “ame-a ou deixe-a”, porque ama o que critica (apenas por que não é como ele queria): “Te odeio, Fortaleza, como aquele marido traído, que te bate e xinga, mas não te deixa” p.14)

Os sujeitos da cidade – os “pinadores” de ônibus, o velho caviloso com os bolsos cheios de bombons, os homens viris que povoam a Praça do Ferreira, os banheiros de cinema ou os ônibus – personagens de algumas crônicas, em “Os Vampiros” corporifica-se num tarado que, engraçado, tem o próprio perfil do autor: “é calvo, altura mediana, um risinho cínico no canto do lábio; anda sempre com uma agenda surrada e um jornal do dia na mão esquerda”. Como diz Tércia Montenegro em seus comentários sobre a obra, “o alvo muitas vezes se volta para ele mesmo”, que não se exclui do “desajustamento” de que acusa seus conterrâneos. A praça e o ônibus são seus cenários prediletos, pois é exatamente nesses lugares que os sujeitos da rua atuam: o sábio charlatão, o tarado, os jogadores de dama que urinam na calçada da Academia, o bêbado, o trocador do ônibus e os passageiros. Pedro utiliza a Cidade como um laboratório e, com seu agudo senso de observação, transforma uma cena banal em um texto irônico e até cômico, como ocorre em “Um bêbado” e em “A catraca”.

A crítica à falta de memória do povo cearense é mais que lícita. A crônica “Vergonha”, que toma a cidade como “a nossa burrinha loura desmiolada pelo sol”, parodiando o verso antológico de Ney, traz reiterações através do redundante uso das conjunções adversativas – “Mas, entretanto, no entanto e contudo (além do vulgar mas útil mas)” – para reforçar o lamento pela destruição dos prédios que deveriam ser preservados. A cidade é o meio que ele utiliza para fazer sua crítica, mas o alvo é o povo de sua terra. Há, aí, um processo metonímico: o todo pela parte. Quem são desmioladas são as autoridades que não tomam conta da cidade como deveriam; quem é desmiolado é o povo que cruza os braços, passivo, sem saber o que perde.

A cidade e suas perdas se desenham linha a linha: seus monumentos, sua alegria (o trapezista não tem mais esperança de que o Circo sobreviva), a vila, a Gentilândia desfigurada pelo progresso. Resta a figura do Alcides (Pinto), símbolo de resistência, a pairar quase como um espectro numa cidade onde “nem um galo pode mais cantar”.

A influência de J. J. Veiga, presente em contos seus anteriores, volta a se fazer notar em “A passagem do Dragão”, que lembra, pelo insólito, “A estranha máquina extraviada”. O cronista e o contista se confundem, se tocam, na recorrência temática do sumiço de Luzanira no Carnaval e em “Desconfiança”, cujo desfecho surpreende o leitor: a mulher flagra o marido de amores não com uma amante, mas com uma boneca inflável.

Fortaleza voadora celebra uma cidade que foi – “E é certo que estes mundos quase invisíveis, estas esquinas impossíveis do tempo, precisarão sempre de um ouvido atento, de dois olhos bastante distraídos, para não desaparecerem entre as infinitas peças que movimentam a engrenagem desse gigantesco mecanismo do mundo” (p.62). Pedro insiste em ter esses ouvidos e esses olhos a perscrutarem o passado. Ele quer, por força, pelo menos conservar na memória o tempo em que a cidade não era uma selva. O saudosista é inimigo do progresso, ele assume; como assume que, para sobreviver a ele mesmo, muda de casa mais de uma vez no ano tentando fugir de si próprio (“Mudança”). A insatisfação é transferida para as casas, para a cidade que não o cabe mais, que ele não reconhece mais. Pedro é cruel com Fortaleza? Não, é um velho moço apaixonado e deixado, em busca de uma “loura” que só existe, agora, em sua saudade.

O Amor, mais uma vez e sempre

Quando o amor acontece, os poetas saltam de suas torres e vestem-no com as palavras, cercam-no com seus versos mais belos e celebram-no na eternidade da poesia. Esta fonte inesgotável de inspiração tem atravessado o tempo sem o menor vestígio de esgotamento. Ovídio, no século 43 a.C. teorizando a Arte de amar, já dizia no preâmbulo do Livro Primeiro: “se houver algum homem comum a quem a arte do amor lhe seja desconhecida, que ele leia este poema e que, conhecendo-a através de sua leitura, ame”. Sentimento essencial à existência, foge a qualquer tentativa de definição, já que seu cerne, já o disse Camões no século XVII, é a própria contradição: é fogo que arde e não se ver/ é ferida que dói e não se sente...

As contradições e as dores do amor parecem inevitáveis e em nada o anulam; com dizia ainda Ovídio: Mais violentamente o amor me transpasse, mais violentamente ele me abrase, melhor saberei me vingar das feridas que ele me fez... em vez do lamento danoso tem-se a fonte da poesia e da vontade de viver. Essa ligação amor/dor que tanto despertou a criação dos poetas românticos, no século XIX, está na Bíblia, precisamente no livro dos Coríntios (13: 4-7), onde o apóstolo Paulo diz que “o amor é sofredor, é benigno... tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” Quanto mais resistência à dor, maior o amor será.

Lançando mão de sua rima com dor, ou de sua celebração como um sentimento sublime ou sensual, o fato é que o amor atravessa o tempo como um tema atemporal, o que se comprova com a afirmação do poeta Vinícius de Morais, após a revolução do Modernismo de 22, século XX, escrevendo sonetos de amor, e com a permanência do seu estro nos poetas contemporâneos que o celebram como um tema atual (antigo e eterno, como o diria Moreira Campos).

Tal é o caso do poeta Gildemar Pontes, que traz agora a público, pelas edições Acauã, o livro de poemas Quando o amor acontece... cujo título já anuncia o conteúdo: o que advém do amor quando ele se realiza. Avesso à dor, mas nem por isso isento dela, o poeta dedica-o “a todas as mulheres que não fazem o amor doer”. O que não o impede de acrescentar reticências ao título, conduzindo o leitor a buscar entender, nos versos que se seguem, o que ocorre quando esse sentimento se plenifica, seja pelos apelos da carne, evocando o amor sensual, devorativo (quis devorar-te pelos seios / teus seios eram dias romãs / cresceram para maçãs rosadas / às vezes repousam em minhas mãos/ ou esperam e minha boca / serem lentamente devorados); seja no amor encontro (se minha alma fosse só minha / eu te daria a metade/ como ela é nossa / somos beija-flor e rosa / no caminhos dos encontros); seja no amor desencontro (amar a ti é não sei o quê / que dói na ausência / é insuficiência respiratória que não passa), versos de sopro camoniano, sem dúvida! Seja no amor busca: a alma é a parte desgarrada/ de um deus que espera / outra alma desgarrada / no infinito que procura, versos que lembram outros de uma romântica incorrigível em pleno Modernismo português: “Sou talvez a visão que alguém sonhou, / alguém que veio ao mundo pra me ver / E que nunca na vida me encontrou” (“Eu”). A influência de Florbela Espanca se comprova quando o poeta, a despeito dos desencontros, insiste em cantar a esperança e diz: Minh’alma de sonhar-te anda perdida/e a esperança bate florbelamente em meu peito.

O amor permanece celebrizado, tanto pela lembrança da afeição inocente, que veio aos 9 anos com muitas sardas no pequenino rosto da menina-mulher amada como no primeiro ato, aos 13, com seu primeiro amor sem coração (primeira dor?). As mulheres, deusas de carne e nuvem, são meninas, amantes, mãe, filhas que se vão construindo em forma de palavras, seja pela saudosa passagem (estarei feliz no andar que me levou?), pelo desejo sensual (mas não resisto ao teu sexo em brasa/aqueço minha mão entre o teu sexo/e preparo o dilúvio que vem depois), pela ternura infinita (de ti serei sempre o melhor amigo/a velar teu sonho), pela efemeridade (o dia em que eu te conheci/foi como um relâmpago/nos olhamos/nos beijamos/e pela manhã sumiram os pirilampos), pela paixão avassaladora que o faz enxergar nos olhos da amada dois tigres famintos. As mulheres, belas donas-de-casa, boas de cama, trabalhadoras, intelectuais, bandoleiras, vagabundas, para o poeta, são as partes de um todo, já que mulheres que não valem um vintém/mulheres diamantes estrelas brilhantes/raios de luar/nunca estão todas numa só. Sem preconceito de raça, credo ou comportamento, todas são celebradas e... amadas.


O poeta, embora pareça recusar a dor, como já se disse, transcende-a na forma do poema: eu não queria esta ausência / nem esta distância; [...] eu também sou náufrago em teus olhos/no teu corpo que reincendeia/ as cinzas do meu amor. Sem nenhum vestígio do amor como uma maldição, sem fazer gênero de poeta romântio, decadente ou pós moderno, Gildemar exercita o amor vivido, presente, passado, desejado, mostrando o que se dá quando ele acontece ou simplesmente conceituando-o: amar é devoção sobre todas as coisas... ou dando a receita de sua perenidade: o amor é concreto / é preciso construí-lo com tijolos de carinho. Desta forma, canta e decanta o amor, marcando a ferro e fogo em seus versos sua indelével existência, sempre num sopro de bonança, nunca de tempestade, como quem consegue cumprir a promessa de construir um tempo sem dor ou, pelo menos, de manter uma resistência consciente a tudo o que for adversidade.Parabéns, poeta, pelo menino que fazes permanecer no homem que és!

Os contos bregas de Thiago de Góes, com suas Lobas, deusas e ninfetas – kitsch como estilo

Kitsch, palavra de origem alemã (verkitschen), designa valores estéticos distorcidos e/ou exagerados, o que ocorre, no caso do texto literário, através do uso de estereótipos, chavões, lugares-comum, floreados. O escritor passa, com a utilização desse modelo, a ter um estilo marcado pelo brega. Ou seja, faz uma literatura “menor” do ponto de vista do que a elite literária convencionou como chique/maior.
No Brasil, especialmente, toma-se como kitsch o que parece de mau gosto. No território das artes, temos, como exemplo, a música de duplo sentido, a dor-de-cotovelo, os textos melosos ou, no caso das artes cênicas e da literatura, os melodramas lacrimosos. Nada mais irônico do que falar da sociedade, associando-a ao kitsch, que ela tanto rejeita como um valor distorcido da beleza que cultua.
Lendo as narrativas de Contos bregas, de Thiago de Góes, publicadas em 2005 pelo selo literário potiguar “Novos escribas”, temos um exemplo perfeito de criação assumidamente em cima do que se chama brega; o próprio título da obra já faz esse anúncio, bem como sua capa coloridíssima e o prefácio feito pelo cantor Falcão. Thiago escolheu a dedo canções sedimentadas no imaginário popular e criou, a partir das letras, personagens, situações e sentimentos os mais diversos: ódio, amor, vingança, traição, armações de namorados, loucura, prostituição, bebedeiras, esquizofrenia, suicídio. Por vezes irrompe o gênero fantástico (a fusão do homem com o cachorro, o homem/imagem/espelho, o fuscão que avisa ao marido da traição da mulher com seu melhor amigo, aparição de espíritos) e as histórias se fazem por acontecimentos inexplicáveis pelas leis da razão. O mais inusitado é que os contos têm, quase todos, títulos de músicas bregas, de onde também são retiradas as epígrafes; o leitor, desse modo, vive as situações e intui sua trilha sonora. A linguagem, sem rebuscamento, com traços da oralidade, não foge do lugar comum, ao contrário, prima por ele. O sumário do livro parece mais uma seleção de músicas: “Eu não sou cachorro, não!”, “Cadeira de rodas”, “Aparências”, “Fuscão preto”, “Meu ex-amor”, “No toca-fitas do meu carro”, “Deixa essa vergonha de lado”, “Eu te peguei no flagra”, “Tranquei a vida”, “A última canção”, entre outras. O repertório se coaduna perfeitamente com a atmosfera, a postura dos personagens e, sobretudo, com os enredos das narrativas, cujos dramas aparentemente banais revelam muito da condição existencial do homem urbano do nosso tempo.
Mais recentemente, em 2007, Thiago traz à lume outro volume de contos – Lobas, deusas e ninfetas – reafirmando sua preferência pelo Kitsch. Como no livro anterior, os contos vêm todos com epígrafes de músicas românticas, desta feita, exclusivamente interpretadas por vozes femininas, como Kátia (a prefaciadora), Roberta Miranda, Joanna, Maria Bethânia, Rosana, Alcione, Diana, As Frenéticas e Lílian. A maioria dos títulos dos contos também é retirada de músicas, cujas letras inspiraram as histórias: “Amanhã talvez”, “A majestade, o sabiá”, “fatalidade”, “Lembranças”, “Negue”, “Perigosa”, “Tô fazendo falta”, “Escrito nas estrelas” (entre outras). Histórias de encontros e desencontros, abandonos, traições, solidão, impotência diante das limitações e amores patológicos parecem transplantadas da realidade para a ficção. As protagonistas são predominantemente mulheres sensuais, erotizadas ou simplesmente solitárias e desiludidas. É delas o universo que se delineia, como já diz o título da obra. O gênero Fantástico volta no melhores contos da coletânea: “Lembranças” e “Rebelde”. No primeiro, o espírito da mulher morta insiste em manter-se na terra; no segundo, a menina pervertida e drogada conversa com um quadro cuja figura é um palhaço; ao insinuar-se para a figura, descobre que ele é o pai que ela nunca conheceu (viu-o apenas uma vez, sem saber quem era). Antenado com seu tempo, Thiago incorpora tanto a linguagem como os gêneros textuais do mundo virtual: Blogs, Orkut, Messenger e faz de seus personagens seres contemporâneos, parceiros de uma era tecnológica.
Nas duas obras, ele mostra, a despeito de inspirar-se em conhecidas canções, originalidade e inventividade. Seja fazendo rir ou chorar, brincando ou falando sério, seus personagens conquistam o leitor e levam-no a aventuras por vezes tragicômicas. Consciente do seu estilo, Thiago executa-o da melhor forma, assumindo uma postura austera diante dos rótulos e não evitando-os. Não se pode, pois, dizer que seu estilo é marcado pela falta-de-estilo, ao contrário, é seguramente marcado pelo que a elite literária rejeita: o lugar comum, a dor-de-cotovelo. Essa adesão explícita e sincera faz dele um dos mais vigorosos e autênticos ficcionistas de nossa época.

Capitão Astronauta: uma mensagem de otimismo - (Apresentação)

criatividade é sempre imprevisível, sobretudo quando é fruto da mente inventiva da criança, que vive num mundo adverso e, através da sua imaginação, pode construir uma realidade condizente com seus desejos e expectativas. Luís descobriu, aos oito anos, que poderia vencer o medo por meio da palavra, que poderia, atemorizado por um “valentão” do colégio, em vez de espernear ou se rebelar, criar um super-herói para defendê-lo. Com seu imaginário fértil, deu corpo à sua fantasia, e a criação veio como autodefesa, como forma de sobrevivência: o Capitão Astronauta foi o primeiro de uma galeria de mini-heróis que pululariam em sua cabecinha prodigiosa: Madame-Fraldinha, Mico, Homem Sorvete, Borboleta da Inteligência, Gêmeos sonâmbulos, Mímico Feliz e Homem Joaninha. Leitor constante e atento desde que aprendeu a ler, ele não teve dificuldade de compreender e expressar suas próprias emoções; aprendeu a desenvolver uma visão lúdica e poética da vida, mantendo um forte senso de percepção sem macular o sabor de sua infância. Esse equilíbrio deu-lhe o poder de imaginar e criar, deu-lhe a capacidade de enxergar saídas para os muitos problemas que a vida oferece, ter um pensamento crítico e poder enfocar, nas suas historinhas, problemas sérios como, por exemplo, o “aquecimento global”.


O Gibi foi criado por um menino inteligente, de mente desenvolvida, mas não vemos no conteúdo dos textos os sinais de um menino adulterado pela maturidade precoce. Ao fazer a revisão, procurei ter o cuidado de conservar as expressões originais, exatamente para não descaracterizar seu nível de linguagem. As marcas de uma linguagem amadurecida, a despeito de todos os cuidados, foi mantida, pois correspondem à sua própria forma de se expressar. Vê-se, entretanto, que são textos de uma criança que se sente criança, como já falei, e não um adulto em miniatura.

A leitura é leve e divertida, tem um estilo forte e carregado de sentido, resgatando inclusive símbolos que perduram no nos adultos: quem nunca teve uma professora terrível? Quem nunca, quando criança, pensou no cocô como um inimigo ou no xixi fugindo da privada e enchendo o mar? Quem nunca esperou a salvação através de um super-herói? A imaginação transforma em possível o impossível: a professora truculenta merece mesmo ser enviada para um asteróide qualquer. O escatológico faz parte da normalidade, embora nosso pudor com as palavras o evite. No final de todas as histórias, a mensagem de otimismo: O bem sempre vence!!! É possível destruir o mal!!!


Essa publicação nos mostra que o imaginário, ligado à emoção e à afetividade, dá segurança e certeza de que não estamos criando uma geração de repetidores infelizes. Na leitura está o segredo do homem capaz de idéias, do artista, do cientista e do político. Ou mesmo de um profissional simples, mas criativo. Luís Porto Brasileiro é um exemplo sólido de que nossas crianças podem ser capazes de renovar a cara deste velho mundo caduco. Parabenizo-o, Luís, por esta lição à humanidade. Quero continuar acreditando, como você, que os problemas têm solução e que os homens podem criar estratégias de sobrevivência sem necessariamente comprometer a saúde do planeta e a de seus semelhantes.

Obrigada!


Aíla Sampaio (18.06.2007)

Apresentação da Revista Urupema

Foi com muita satisfação que recebi o convite para apresentar o primeiro número da Revista Urupema, que vem marcar o nono ano da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro e o segundo da gestão atual, presidida pela escritora Lourdinha Leite-Barbosa. Isto porque, como leitora e professora de Literatura Cearense, louvo a continuidade de uma tradição das nossas letras que é a união dos escritores em torno de uma publicação coletiva, o que é fato desde o século XIX, com A Quinzena, o Pão, a Iracema, a Clã, no século XX, e tem se mantido até os nossos dias com as Revistas Literapia e Espiral, cujas páginas têm trazido à lume o melhor da nossa produção contemporânea.

Urupema, a partir do título, palavra de origem tupi, já impõe marca de expressividade: a peneira que seleciona os melhores grãos, o traço de nordestinidade do objeto que evoca, a dádiva dos deuses, como bem afirmou Lourdinha, no Editorial. Seja qual for a conotação que escolhamos, tem-se a idéia de seletividade. É pela beleza estética que a Revista primeiramente nos seduz: a bela capa e a totalidade do projeto gráfico de Geraldo Jesuíno se impõem e aguçam os nossos sentidos para uma experiência visual prazerosa. Sob seus cuidados, os textos são distribuídos como desenhos de palavras. Coadunando-se com a qualidade material anunciada, as ilustrações da artista plástica Coca prolongam a idéia da revista como uma obra de arte, desde o verso da capa até as faces das páginas, onde palavra e imagem contraem feliz aliança.

A seleção de textos faz jus à palavra de ordem da contemporaneidade: ecletismo. Não parece haver fronteiras entre as formas: os sonetos de Batista de Lima, Giselda Medeiros, Linhares Filho, Sinésio Cabral, Virgílio Maia, a elegia de João Dummar Filho, a balada de Barros Pinho dividem espaço com os versos livres de Juarez Leitão, Regine Limaverde, Fernanda Quinderé, e com a experiência concretista bem sucedida e criativa de Pedro Henrique Saraiva Leão. Os poemas relativamente longos de Linhares, Virgílio, Inez Figueiredo e Jorge Tufic convivem pacificamente com versos curtos e concisos de Lourdinha Leite-Barbosa, Beatriz Alcântara e Diogo Fontenele.

Simbióticos, os motivos da celebração também dialogam: A catarse pura e simples se harmoniza com as elocubrações existencialistas e os mergulhos filosóficos. Vôos memorialistas de Barros Pinho, Carlos A. Viana e Lourdinha se unem ao permanente resgate da infância de Diogo e à preocupação com o presente de Dummar ao celebrar seu/nosso Meireles. Estéticas e temas antigos amalgamam-se de forma inovadora. Como nos diz Bauman, em seu O mal-estar da pós-modernidade, as novas invenções não afugentam as existentes, juntam-se a elas e se movem juntas. A multiplicidade de estilos e gêneros já não é uma projeção da seta do tempo, é uma realidade palpável.

O amor, o tema mais visitado em toda a literatura universal, tem na poesia de Carlos Augusto Viana, Giselda e Beatriz sua abordagem mais vigorosa, e na sensualidade dos versos de Juarez Leitão sua ancoragem mais sutil. O passado presentificado na casa, sempre a casa que nos habita ou os escombros dela, extensão da infância, das perdas, está na fibra do poente provisório de Viana, no ritual do retorno eterno de Arthur Eduardo Benevides, nas portas, nos fantasmas e nas escadas de cedro de Linhares, nos alpendres e nos espelhos dos mortos de José Telles, no monturo da memória de Lourdinha. “Figuras indormidas, anjos turvos, fantasmas, pais, mães e filhos, amores” se fazem cantar, e, na fusão presente-passado, quando o futuro era presente (Fernanda) são trazidos de volta, e, com eles, estamos, como no poema de Artur Eduardo, sempre voltando, voltando e penando, num eterno rito de passagem, na vã construção de ódios e afetos, como proclama Beatriz... Todos panos poucos para tantos abismos, na concepção poética de Batista de Lima, quando retira a pele para desnudar-se no poema. A mesma nudez enzimática de Regine que acaba por unir-se à nudez da criação na metapoética de Linhares, Fernanda, Sinésio, Inez e Tufic, para quem o sopro é a letra.

Os dois únicos contos - do Dimas Macedo, e do Nilto Maciel,– representam a narrativa curta e legitimam a tendência à concisão; percebe-se claramente a consciência do texto literário como um trabalho de linguagem. O dilúvio interior de Dimas se anuncia numa narrativa introspectiva, cujo personagem narrador parece marcado pelas imagens do passado, por suas perdas e seus amores; já a história suburbana de Nilto traz um traço da urbanidade trágica contemporânea, numa leitura mais exterior do mundo, embora não menos sensível. E há argúcia nas resenhas de José Alves sobre a escrita de Yuta Lerche, e de Noeme Elise que nos recorda Cesário Verde, o poeta precursor do Modernismo português. Há argúcia em tudo e talento!

Parabéns a todos os membros da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro por esta grande contribuição às letras cearenses contemporâneas. Que os Deuses concedam-lhes a graça de passarem sempre pelas malhas intrincadas das peneiras e possam se manter entre os escolhidos para, com suas dádivas, continuarem a ter o poder de tão bem vestir as idéias com palavras. Obrigada!

Aíla Sampaio , março de 2006

A Poesia do silêncio

Impressionou-me bastante a economia vocabular da poesia de Manoel Ricardo. As palavras parecem pedras polidas, de arestas aparadas. Não é fruto do acaso essa poética visivelmente cerebral, quase desumanizada, filha da lírica moderna. É inegável a assimilação de suas leituras e a influência do crítico (que ele também é). Intuo Mallarmé, sussurrando aos seus ouvidos, na composição de cada verso: “poesia se faz com palavras, não com idéias”. Mas Manoel não é tão obediente, faz poesia (também) com idéias, ainda que imersas no peso das palavras, peças fundamentais, concretas. Não é à toa que elas aparecem “embrulhadas”, contidas no invólucro que ecoa logo na sugestão do título do seu primeiro livro, ou materializadas na objectualização explícita de Falas Inacabadas (objetos e um poema).
Vê-se claramente que a sua poesia não decorre da intuição, mas de uma silente construção, que nos permite entrever a colocação de tijolo sobre tijolo, com a devida medida da argamassa. Arrisco até dizer que a argamassa vem fundida à matéria de cada tijolo, porque não a vejo ocupar espaço. Falo dos elementos coesivos, insistentemente ausentes. Quase toda a seqüenciação é feita no corpo a corpo que as palavras travam umas com as outras. Esse processo criativo comunga com as idéias de Archibald Macleish (apud Harries, 1992:80-1) que afirmava que o poema “não deveria significar, mas ser” bem como com as concepções de feitura de textos dos líricos modernos, sobretudo as de Mallarmé e Valèry.
Outra característica marcante é a subversão das regras de pontuação. Ora os sinais são completamente abandonados, como a deixar a leitura do texto à deriva; ora deslocados para uma posição inusitada (antes e não após as palavras); ora valorizados, ocupando um verso inteiro, absolutos, íntegros, como se assim, deslocados completamente, adquirissem mais força e expressividade. Friedrich (1991:156) considera esse recurso da ausência (ou deslocamento) de pontuação uma forma impetuosa de “evitar ou transtornar contextos e ordens de relação, num claro objetivo de multifacetação do texto”. Com o que eu concordo, haja vista a existência de propósitos estéticos bem definidos na poesia dos líricos modernos e, não obstante, na de Manoel.
A construção consciente do poema revela-se com propriedade incontestável no metapoema “O livro” (Embrulho p.15 ). Entenda-se o poema como uma mensagem do poeta a Carlos Augusto, a quem os versos são dedicados. Dá até para entrever, no subtexto da “mensagem”, a conversa entre Mallarmé e Degas. A cumplicidade poética entre ambos (Manoel e Augusto) é tão evidente que é Augusto quem se manifesta para fazer a “introdução” do poema “Os peixes” (Embrulho p.41) com um poema seu, (a Manoel dedicado). Não é só pela leitura de “Os peixes”, feita por Augusto no poema “epígrafe”, que se percebe o animal aquático como uma metáfora da coisificação, da objectualização de qualquer manifestação sensível. É um belo texto, não à toa o mais longo do livro.
Observe-se a expressividade da parte IV deste mesmo poema, evocada pela interrupção do discurso do último verso. A suspensão do verso não é a suspensão do pensamento. Palavra e peixe deslocam-se e o sujeito-lírico fragmenta-se para não se sentir tentado a dizer o que prefere... decide calar, não arriscar uma verdade que não sabe(?) se é.
Na maioria dos textos só a linguagem fala, o eu silencia. Algumas vezes, entretanto, é possível perceber o que diz Hugo Friedrich (1991 p.211) a respeito da lírica moderna: "Quem é capaz de ouvir, percebe nesta lírica um amor duro, que quer permanecer intacto". Quem ler “Dorso” (Embrulho p.31) concorda com Fridrich. Há, a partir do título, a sugestão de uma sensualidade sutil, comedida, sufocada nas entrelinhas, mas latente, aliciada nas palavras, driblada nos silêncios que gritam. João Cabral de Melo fez parecido em Sevilha andando.
E por falar no silêncio do eu, tenho outra vez de buscar Mallarmé , que almejava o impossível através da proximidade do silêncio. E H. Domin (apud 1991 p.159), que aconselhou em seu poema “Linguistik”: “Aprenda a calar na linguagem”. Manoel sabe bem o que isso significa e, não despretensiosamente, constrói sua poética perpassada de silêncios. Do mesmo silêncio que Elida Tessler, artista plástica gaúcha, sua parceira em Falas inacabadas, sugeriu para os textos que acompanhariam as fotos dos seus trabalhos. Daí a concisão, a suavidade por vezes insular, a constante objectualização da palavra. Houve mesmo um projeto de unir objetos a palavras, quase num desejo de fundi-los ou considerá-los do mesmo “barro”. Os objetos captados por Elida coadunam-se perfeitamente com os textos, numa coexistência perfeita de metades que se completam. Calam-se diante uns dos outros. Outra vez lembrei João Cabral de Melo Neto e sua fixação nas artes plásticas, sobretudo nas de Miró.
Belo o embrulho todo. Corpo e alma. Fundo e forma. Sem respingo, sem excrementos. São visíveis as marcas das leituras do poeta, mas é incontestável sua luz própria. A mim me bastava “Geometria” (Embrulho p. 23) para compreender que Manoel está acima de qualquer influência. Belas as Falas inacabadas e feliz a promessa clara de que os versos continuarão. Confiramos as belas passagens: /o sempre é/ improvável/ e longe/ (Embrulho p.32); / tomar de volta o avião/lições de partir/ (Emb. p.50), /;faz frio fora/calor dentro/ (Emb. p.55); /e/cataloga/estrelas/ (Emb. p.63); /juntar das mãos/a ausência/própria /de companhia.(Falas inacabadas – V), Ficaria dito/:/do que resta morto/ainda vivo (F.inacabadas XIII). Como diz Friedrich (1991 p.190), “Nenhum eu fala /.../ mas a fórmula canta”. Eu diria que o eu pouco fala, mas encanta.
São breves impressões que me obrigam a lembrar o poeta espanhol P. Salinas: “A poesia conta com aquela forma superior de interpretação que reside no malentendido. Quando uma poesia está escrita, está concluída, é certo, mas não encerrada; busca outra poesia em si mesma, no autor, no leitor, no silêncio” (apud Friedrich 1991 p.179). Assim me assolou essa poesia que diz onde não diz e cala o que quer falar, numa forma de não se deixar ouvir. Mas eu ouvi (ou penso ter ouvido, é tênue a fronteira entre o real e o imaginário para os poetas).
Enfim, há mais a dizer, mas calando faço-me cúmplice. Não pretendo enquadrar ou rotular a poética de Embrulho e Falas inacabadas, apenas me senti tentada a comentá-las, pelo prazer que a leitura me proporcionou, e o fiz através de breves impressões que não devem ser vistas como a verdade absoluta. Salinas já advertira da possibilidade de “malentendido” e eu me fio nele e em Jakobson que respalda a minha análise ao afirmar que a poesia é a “linguagem voltada para sua própria materialidade”. Manoel, com certeza, não pensa diferente.

Fortaleza, abril de 2002.



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2a. ed. São Paulo, Duas cidades, 1991.
HARRIES, Karsten. "A metáfora e a transcendência" in: Da metáfora. São Paulo, Pontes, 1992:77-93.
MELO NETO, João Cabral . Sevilha andando (1990) in: Obra completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1994:627-51.

Apresentação da Revista Literarte

Foi com muita satisfação que recebi o convite para apresentar o primeiro número da Revista do Curso de Letras da Unifor - a Literarte - revista que vem marcar a afirmação deste curso que, no seu quarto semestre, conta com cento e cinqüenta alunos, mais do que contam, no mesmo curso, Universidades públicas tradicionais do interior do estado.
Mas o que enaltece o nosso jovem curso não é a mera quantidade, é o empenho em fazer emergir um castelo das cinzas e vê-lo solidificado na motivação exposta no rosto do seu Diretor, da sua coordenadora, dos seus professores e de cada um dos seus alunos. O diferencial está na vontade coletiva de construir, em bases consistentes, o percurso que formará profissionais de letras, comprometidos com a sua missão fora dos muros desta Universidade. Note-se que um dos indicativos do compromisso dos alunos em edificar o curso está já nesta revista, produzida por eles, possível somente pela luta deles.
No itinerário da conquista do espaço social, de um curso que se afirma ante a sociedade cearense, com a peculiaridade de ser noturno para acolher aqueles que trabalham o dia todo, e com o currículo condensado em três anos e meio, viabilizando ganho de tempo para aqueles que têm pressa de chegar, adentramos, agora, com a Literarte, o território da palavra que nos é facultada, no intuito de, como é dito na apresentação, “proporcionar um equilíbrio entre o entretenimento e a reflexão”.
E é já o primeiro artigo que nos presenteia com um mergulho no vasto terreno da reflexão. O prof. Batista de Lima, senhor das palavras e eterno apaixonado pelas letras, cria uma bela metáfora para desvendar os labirintos de um texto, através dos movimentos de rastreamento e prospecção, incutindo no processo da leitura as duas direções que acabam por nos levar ao mágico reino das palavras, contido nas linhas e entrelinhas, fundindo criador e criatura no momento apoteótico do desvendamento oriundo de cada “ato de leitura”.
No mesmo estro reflexivo, o Professor José Lemos Monteiro tece críticas ao Hino Nacional brasileiro, revelando flagrantes falhas estilísticas e despertando-nos para o aspecto ideológico que julga “vulnerável e prejudicial à consolidação dos valores e aspirações do povo brasileiro”. É também para reflexão o texto de Silvana Mara sobre a proliferação de universidades particulares em nosso estado, suscitando um olhar perquiridor para os duvidosos critérios utilizados pelo MEC diante de tanta concessão e para o mais grave: a qualidade dos profissionais que jogam no mercado de trabalho.
Contundente é o desabafo do aluno Thomaz Othon sobre o desvirtuamento do sentido dos estágios curriculares, mostrando no artigo “Estagiário também é gente” que, além da falta de oportunidade para consegui-los, quando o conseguem, nem sempre contam com o respaldo dos orientadores, e, na maioria das vezes, são tratados como “office boy de luxo” pelas empresas. Igualmente válido como conhecimento de uma situação e ponto de reflexão é o texto “A linguagem além da fala”, escrito por Nilton Câmara, aluno do quarto semestre de Letras, que revela a sua constante preocupação com o valor social do deficiente auditivo e com a falta de políticas governamentais que lhe possibilitem uma melhor condição para o seu desenvolvimento lingüístico.
Como não poderia faltar uma boa resenha literária, temos uma leitura prévia do livro “Andanças e Marinhagens”, do poeta cearense Linhares Filho, feita com bastante perícia pela professora Célia Felismino, que nos vale como incitadora da compreensão da obra e, sobretudo, como uma boa indicação de leitura do texto poético.
Como entretenimento, não desvinculados, claro, do teor de textos também reflexivos, temos os contos “Coisas que acontecem”, de Hercília Castro, em que o humor perpassa linhas e entrelinhas; “Dentro do Ônibus”, de Isabel Gouveia, que nos mostra a massificação do ser humano no seu dia-a-dia e “ Santo remédio”, de Catarina Lobo, que faz uma brincadeira com o estigma da ingestão de bebida alcoólica quando se está tomando remédio, levando-nos a um final mesmo hilariante, até pelo seu tom e pela simplicidade com que joga os fatos, como se contasse uma história numa roda de amigos.
A poesia aparece com toda força em “O santo”, da professora Francilda Costa, uma desmistificação dos “santos” e “santas” do altar da igreja. Em sua irreverência, Francilda nos revela que santos somos todos que conseguimos sobreviver neste mundo de dores. Também revelam-se veias poéticas nos textos “Sou” e “Da esquina da Rua”, de Chico Miranda, “Sofreguidão”, de Paulo Freitas, “O tempo”, poema antológico de Laurindo Rabelo, e no pedido de “Reconhecimento social à poesia” de autoria de Kiko Santos, que converte a emoção de suas lentes para a arte de manejar as palavras.
Para finalizar, A Literarte apresenta uma entrevista com o emérito professor Costa Matos, em que se tem um perfil do seu trajeto profissional, da sua espirituosidade e senso de humor, bem como do escritor de contos e poesias que vem-se lapidando desde a publicação de “Pirilampo”, seu primeiro livro de poesias, lançado quando cursava o primeiro ano do segundo grau. O seu poema “Perplexidade”, exposto na contracapa da revista, nos dá noção do estilo enxuto e direto de um poeta em constante busca pelo significado de sua estada no mundo.
Creio que estas indicações já incitam a curiosidade da leitura dos textos na íntegra para comprovação de que a Literarte estréia com esmerado apuro na seleção de seu material, visando sempre à identidade do curso a que está filiada. É o primeiro degrau de uma escada íngreme, mas o primeiro passo já foi dado e a vontade de chegar ao topo, por ser mais alta e mais intensa, desconhecerá qualquer percalço. Parabéns a todos os que fazemos o Curso de Letras nesta primeira investida no espaço da palavra, na “tentativa de resgate do verdadeiro valor da palavra”.
Obrigada,
Aíla Sampaio