quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Apresentação da Revista Urupema

Foi com muita satisfação que recebi o convite para apresentar o primeiro número da Revista Urupema, que vem marcar o nono ano da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro e o segundo da gestão atual, presidida pela escritora Lourdinha Leite-Barbosa. Isto porque, como leitora e professora de Literatura Cearense, louvo a continuidade de uma tradição das nossas letras que é a união dos escritores em torno de uma publicação coletiva, o que é fato desde o século XIX, com A Quinzena, o Pão, a Iracema, a Clã, no século XX, e tem se mantido até os nossos dias com as Revistas Literapia e Espiral, cujas páginas têm trazido à lume o melhor da nossa produção contemporânea.

Urupema, a partir do título, palavra de origem tupi, já impõe marca de expressividade: a peneira que seleciona os melhores grãos, o traço de nordestinidade do objeto que evoca, a dádiva dos deuses, como bem afirmou Lourdinha, no Editorial. Seja qual for a conotação que escolhamos, tem-se a idéia de seletividade. É pela beleza estética que a Revista primeiramente nos seduz: a bela capa e a totalidade do projeto gráfico de Geraldo Jesuíno se impõem e aguçam os nossos sentidos para uma experiência visual prazerosa. Sob seus cuidados, os textos são distribuídos como desenhos de palavras. Coadunando-se com a qualidade material anunciada, as ilustrações da artista plástica Coca prolongam a idéia da revista como uma obra de arte, desde o verso da capa até as faces das páginas, onde palavra e imagem contraem feliz aliança.

A seleção de textos faz jus à palavra de ordem da contemporaneidade: ecletismo. Não parece haver fronteiras entre as formas: os sonetos de Batista de Lima, Giselda Medeiros, Linhares Filho, Sinésio Cabral, Virgílio Maia, a elegia de João Dummar Filho, a balada de Barros Pinho dividem espaço com os versos livres de Juarez Leitão, Regine Limaverde, Fernanda Quinderé, e com a experiência concretista bem sucedida e criativa de Pedro Henrique Saraiva Leão. Os poemas relativamente longos de Linhares, Virgílio, Inez Figueiredo e Jorge Tufic convivem pacificamente com versos curtos e concisos de Lourdinha Leite-Barbosa, Beatriz Alcântara e Diogo Fontenele.

Simbióticos, os motivos da celebração também dialogam: A catarse pura e simples se harmoniza com as elocubrações existencialistas e os mergulhos filosóficos. Vôos memorialistas de Barros Pinho, Carlos A. Viana e Lourdinha se unem ao permanente resgate da infância de Diogo e à preocupação com o presente de Dummar ao celebrar seu/nosso Meireles. Estéticas e temas antigos amalgamam-se de forma inovadora. Como nos diz Bauman, em seu O mal-estar da pós-modernidade, as novas invenções não afugentam as existentes, juntam-se a elas e se movem juntas. A multiplicidade de estilos e gêneros já não é uma projeção da seta do tempo, é uma realidade palpável.

O amor, o tema mais visitado em toda a literatura universal, tem na poesia de Carlos Augusto Viana, Giselda e Beatriz sua abordagem mais vigorosa, e na sensualidade dos versos de Juarez Leitão sua ancoragem mais sutil. O passado presentificado na casa, sempre a casa que nos habita ou os escombros dela, extensão da infância, das perdas, está na fibra do poente provisório de Viana, no ritual do retorno eterno de Arthur Eduardo Benevides, nas portas, nos fantasmas e nas escadas de cedro de Linhares, nos alpendres e nos espelhos dos mortos de José Telles, no monturo da memória de Lourdinha. “Figuras indormidas, anjos turvos, fantasmas, pais, mães e filhos, amores” se fazem cantar, e, na fusão presente-passado, quando o futuro era presente (Fernanda) são trazidos de volta, e, com eles, estamos, como no poema de Artur Eduardo, sempre voltando, voltando e penando, num eterno rito de passagem, na vã construção de ódios e afetos, como proclama Beatriz... Todos panos poucos para tantos abismos, na concepção poética de Batista de Lima, quando retira a pele para desnudar-se no poema. A mesma nudez enzimática de Regine que acaba por unir-se à nudez da criação na metapoética de Linhares, Fernanda, Sinésio, Inez e Tufic, para quem o sopro é a letra.

Os dois únicos contos - do Dimas Macedo, e do Nilto Maciel,– representam a narrativa curta e legitimam a tendência à concisão; percebe-se claramente a consciência do texto literário como um trabalho de linguagem. O dilúvio interior de Dimas se anuncia numa narrativa introspectiva, cujo personagem narrador parece marcado pelas imagens do passado, por suas perdas e seus amores; já a história suburbana de Nilto traz um traço da urbanidade trágica contemporânea, numa leitura mais exterior do mundo, embora não menos sensível. E há argúcia nas resenhas de José Alves sobre a escrita de Yuta Lerche, e de Noeme Elise que nos recorda Cesário Verde, o poeta precursor do Modernismo português. Há argúcia em tudo e talento!

Parabéns a todos os membros da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro por esta grande contribuição às letras cearenses contemporâneas. Que os Deuses concedam-lhes a graça de passarem sempre pelas malhas intrincadas das peneiras e possam se manter entre os escolhidos para, com suas dádivas, continuarem a ter o poder de tão bem vestir as idéias com palavras. Obrigada!

Aíla Sampaio , março de 2006

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