quarta-feira, 31 de outubro de 2007

"Carnavalha ": Surrealismo e Carnavalização

“Carnavalha” é o 7º romance de Nilto Maciel, recém lançado pela editora Bestiário (Porto Alegre, 2007). O romance agrada o leitor a partir do trabalho gráfico apurado (o mesmo do livro anterior: a coletânea de contos “A leste da morte” (2006)) até a extensão dos capítulos, sempre curtos e nominados. A história se passa na cidade de Palma, no Ceará, espaço (imaginário) recorrente em livros anteriores, e o leitor fica suspenso no questionamento: a rotina foi modificada pela festa momina ou a cidade é um antro de loucos, que vivem o ‘carnaval’ permanentemente? Afinal, como diz o Zuza: “A cidade é cheia da fantasias. O Carnaval é o cotidiano” (p.147).

A narração faz desfilar uma galeria de personagens que surgem, desaparecem e ressurgem como num desfile de carnaval; o ritmo constante e denso dá a impressão da passagem ‘tumultuada’ de blocos carnavalescos, que é o que constitui, de certa forma, cada capítulo. O discurso do narrador, em 3ª pessoa, predominantemente no pretérito imperfeito do indicativo, um tempo que expressa um fato passado contínuo, coloca o leitor diante de acontecimentos passados, mas de incerta localização no tempo: tudo se passou e parece estar ainda se passando. A idéia de simultaneidade está presente, sobretudo, na quinta parte, quando os capítulos enfocam especialmente um personagem (ou um par), o que é reiterado pela alternância de vozes: o narrador fala e faz ecoar a voz dos personagens, por meio da mistura contínua dos discursos indireto e indireto livre.

Embora o Zuza apareça no início e no desfecho da narrativa, o enredo não tem personagem central – todos estão inseridos no mesmo enfoque delirante do narrador onisciente – a protagonista da obra é a própria vida. Os personagens aparecem invariavelmente submetidos a situações que transpõem a racionalidade, imersos num mundo surreal, que tem a sua própria lei: a do absurdo. Não há nenhum questionamento por parte deles sobre o delírio em que vivem; a transgressão da normalidade aparece como natural. Os acontecimentos que fazem o enredo estão, pois, libertos das exigências da lógica e da razão, vão além da consciência cotidiana e se expressam através do desvario: “Montado num dromedário, Aluísio passeava pelas ruas de Palma. Seguiam-nos outros dromendários, cavalgados por seus amigos de Brasília. Iam pela Avenida Dom Bosco, no rumo da matriz /.../ Súbito os animais se punham a correr pelas ruas, em desabalada carreira. “Sou Lawrence da Arábia. Vocês não me acham parecido com Omar Sharif?”. Aos gritos uma multidão de meninos corria atrás da caravana.” (p.125). De fato, exatamente como preceitua o manifesto surrealista, “Carnavalha” rejeita “a chamada ditadura da razão e os valores burgueses. Humor, sonho e contra-lógica são recursos a serem utilizados para libertar o homem da existência utilitária. Segundo a nova ordem, as idéias de bom gosto e decoro devem ser subvertidas”. Essa filiação não está apenas no conteúdo, mas na própria forma: percebe-se que “o impulso criativo artístico se dá através do fluxo de consciência despejado sobre a obra”. Há uma ‘avalanche’ de situações que se sucedem, literalmente regurgitadas pelo narrador, e nenhuma obedece à lógica referencial. Vejamos outra passagem, quando o sagrado e o profano se colocam lado a lado: “Foliões invadiam a igreja, escancarando as portas laterais e da frente. Fantasiados, de roupas coloridas, pintados e seminus, gritavam, cantavam e pulavam. Maroca leva as mãos à boca horrorizada:”Padre, padre, veja que profanação!”. Porém os fiéis se misturavam aos carnavalescos e se punham a dançar, pular e cantar /.../ E então o pároco, acolitado ainda por Alzira, surgia às suas costas, não mais de batina, porém vestido de uma capa preta, chifres enormes, um rabo a balouçar, língua de fora /.../ Encapetado, o padre buscava Maroca e a encontrava ao lado do altar. Agarrava-a por trás e fazia menção de violentá-la” (pp.100-101).

Na sexta parte, os fatos surreais são interrompidos, e o bêbado Zuza volta às atenções ao perturbar, com a inconveniência e a sinceridade dos ébrios, conterrâneos e visitantes que brincam o carnaval. Durante o tão esperado baile no balneário, seu corpo aparece boiando na piscina. No capítulo “As Cinzas”, simbólico porque marca o fim do carnaval e o fim também do carnavalesco Zuza, todos são interrogados pelo delegado Pedro Cabral. O romance termina com a descrição do baile e a fala do Zuza, em cima do palco: “canalha, carnalha, canaval, canavalha, carnavalha, carnavalma, carvalha, canavialha, carnavialma, bando de canalhas, macacos, cambada de farsantes” (p.173). A orquestra pára, as luzes apagam e sons conexos e desconexos ressoam na multidão. Como no capítulo anterior sabe-se que o Zuza morreu, supõe-se que tenha sido esse o seu momento final. Nenhuma elucidação do crime, entretanto, é dada ao leitor: suicídio? Assassinato? O romance termina. Além do imenso elenco de personagens, há uma infinidade de bichos e insetos que pululam o universo delirante de Palma: cachorros, dromedários, cavalos, onças, gatos, galinhas, baratas, aranhas, corujas, ratos, abelhas, todos nivelados ao homem na mesma aparente naturalização do irracional: “O gato miava, agigantava-se, fazia-se onça e saltava ao pescoço do estranho” (p.74) ”/.../ “Eu não entendo como pode um homem se entender tão bem com um cão e deixar de lado a cadela”. A da casa brincava: “Você não queria dizer a cadele?"Vicente se levantava e saía para a rua. Guiomar ia a seu encalço. A mulher corria à porta e se punha a imitar latidos" (p.78). /.../ “O cachorro se punha a latir e caminhava em direção à dona da casa, dentes à mostra. “Ou a senhora fica com ele, ou eu o mando morder as suas nádegas”” (p.85). Um mundo fantasioso se instaura e nada é o que aparenta ser. Muitos intertextos permeiam a voz do narrador e dos personagens. São passagens de obras ou referência à Bíblia sagrada, a Sheakespeare, Hamlet, Dante Alighieri, Cervantes, letras de música, à carta de Pero Vaz de Caminha: “Alguns homens traziam os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau. Entre eles, cinco ou seis moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas. Traziam suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que mais pareciam meninas” (p.75). Aliás, a Carta está em todo o capítulo “As cinzas”. O nome do delegado é Pedro Cabral e o escrivão, ao datilografar os depoimentos, mantém uma cópia (da Carta) ao lado e fica a repetir passagens. O delegado, ironicamente, vive consultando um “Livro de ditados” e a cada depoimento desfere um como uma verdade irrefutável.

Fora das fronteiras do Fantástico, gênero tão bem exercitado em obras anteriores do autor, “Carnavalha” é um romance ousado, subversivo da ordem e dos cânones tradicionais. O irônico se mistura ao trágico e ao cômico e cria um universo simbólico pleno de representações. Nilto Maciel demonstra total domínio do texto ficcional, autonomia e capacidade de brincar com as coisas sérias. Daí ser impossível ler “Carnavalha” e não referir, também, Bakhtin e sua teoria sobre a ‘carnavalização’ na obra literária. Embora na obra do Nilto o cômico esteja ligado ao trágico – há muito sofrimento, num desmascaramento das agruras da própria existência – nela o carnaval representa a festa dos loucos (festum stultorum) e predomina o realismo grotesco de que fala Bakhtin; há muitas imagens deformadas e exagero, há confusão e dissolução de identidades e a total liberdade de transgredir, inclusive a lógica. Entre o Surrealismo e a Carnavalização, Nilto Maciel escreveu um dos romances mais interessantes que li nos últimos tempos. Vale a pena conferir!

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Imaginação e memória no Romance "A Casa"

Material para o Vestibular UFC/2008


SOBRE A AUTORA:

Natércia Campos (1938-2004) - Cearense, filha de D. Maria José e do contista Moreira Campos.
1998 – Iluminuras – contos (Prêmio Nestlé de Literatura)
1998 - Por terra de Camões e Cervantes - Narrativas de viagens
1998 - A noite das fogueiras – Histórias maravilhosas
1999 - A casa – Romance (Prêmio Osmundo Pontes de Literatura)
2001 - Caminho das águas – Narrativas de viagens
(Além de contos publicados e Almanaques e Antologias)

FOCO NARRATIVO: 1a. pessoa

TIPO DE NARRADOR: Onisciente autodiegético (A casa)
Além de narradora, a Casa, é também protagonista da história. Com sua estrutura secular, constrói um relato memorialístico, em que rememora as gerações que acolheu, como testemunha de nascimentos, vidas e mortes sucedidas ao longo do tempo, bem como dos hábitos, costumes, crenças, superstições e segredos dessa gente. Ela mesma assinala que suas histórias diferem das histórias contadas pelos homens até porque o tempo deles é curto demais (p24). Eles passam, ela permanece à mercê do vento, seu confidente; é abandonada no período de seca, serve de pouso para animais, de abrigo para cangaceiros, é depredada por necessitados e por vândalos, até o dia em que fica dentro do contorno da bacia hidráulica, quando uma barragem é construída em torno do remanso. Leiamos os dois parágrafos finais do romance:
Muitos anos passaram (da visita de Eugênia, a historiadora). Em junho, na véspera do dia mais longo do ano, quem primeiro conseguiu avistar-me no espelho da águas foi Eugênia. Aconteceu quando a estrela Vésper surgiu brilhando no céu, na hora das Trindades em que os ventos tangem luz e sombra nos caminhos entre o céu e a terra. Os ventos, que agitam a superfície das águas,murmuram que é sinal de sorte para aquele que consegue vislumbrar a Casa Grande pousada nas águas profundas e sempre serenas. Sobrevoam estas águas, à minha procura, os ventos-cerceadores quando em travessia.
Próximo à Hora-Grande da meia-noite por brevíssimos instantes, as águas adormecem. Sonho então, sob a luz das estrelas, que sou uma fluida aquarela a espraiar-se refletida no cristal das águas. (p89)

SUPOSTAS GERAÇÕES
1a. geração – o bisavô de Bisneto
2a. geração – o avô de Bisneto
3a. geração – o Pai de Bisneto
4a. geração – Bisneto, as primas (a mãe de Custódio), Eugênia
5a. geração – Ana, Betariz e Elvira (filhas de Eugênia e Custório)
6a. geração – filhas de Ana (netas de Eugênia e Custódio)
7a. geração - netas de Ana (bisnetas de Eugênia e Custódio)
8a.geração – bisneta de Ana, que também se chama Eugênia – herdou a aquarela que sua trisavó (Eugênia, a mulher de Custódio) recebeu de seu padrinho (Bisneto). Ela é a 5a. de 5 gerações de mulheres.

ENREDO:

Ao rememorar os fatos acontecidos sob o seu teto, a Casa conta histórias que viu, ouviu, opina e faz juízo sobre as atitudes de seus moradores, mostrando o universo místico que perpassou o tempo e se manteve através das gerações que se sucederam: são provérbios e crenças cujo teor é transmitido como uma verdade que deve ser seguida. A invocação dos santos e as orações reiteram a atmosfera mítica que envolve as pessoas, inclusive a Casa, que tem o nome de Trindades, o Vento e a Morte, três personagens que atuam sob o efeito da antropomorfização.
A narrativa tem início com a Casa já se apresentando como narradora e dando detalhes ao leitor sobre a sua construção, o capricho do português (Francisco José Gonçalves Campos) que a executou com esmero, com matéria prima de primeira, dando-lhe a solidez que a fez resistir durante séculos. Fala sobre as reformas que sofreu na mão de outros donos, da falta de projeto e da péssima qualidade do material utilizado.

Em seguida, ela apresenta ao leitor Tia Alma, uma mulher devota das almas, que nunca se casou por conta do ar atoleimado que adquiriu ainda bebê quando tomou um vento. Ela criou sobrinhos e afilhados e morreu centenária. Quando, após anos, desenterram seu féretro, seu corpo estava intacto, mas imediatamente virou pó e foi levado pelo vento. Ficam as suas tranças, cujos cabelos permanecem vivos e foram guardados, durante muito tempo, como uma relíquia. (Só foram enterrados séculos depois, por Beatriz)

De outra geração, a narradora resgata a figura do Bisneto, o herdeiro da casa e do Solar. Mostra como despertou a homossexualidade dele sob as suas telhas, como a família sofreu e como o avô o levou, ainda menino, para a casa da serra, onde passou a viver, já que ele nunca seria o que os pais idealizavam. Em um dos seus retornos a Trindades, ele leva um pintor, seu “amigo”, que faz uma aquarela da Casa; juntos, eles escutam do velho passador de gado a história do “encoletado” (cujo relato é reproduzido com a voz do contador e não da Casa). É Bisneto quem leva para a Casa um espelho trazido de Veneza.

Paralela à história do Bisneto adulto, ela conta o sofrido parto da prima dele, cuja criança é amaldiçoada pela mãe, que leva meses para se recuperar da fraqueza, das febres e da palidez, não podendo sequer amamentá-la (é uma cabra que serve de ama de leite). Ela tem um forte sentimento de rejeição pelo menino, que nascera com belos olhos azuis, mas estigmatizada, com seis dedos nas mãos. Embora tenha sido batizado como nome do avô, o menino só é chamado de Custódio, como o chamavam antes do batismo. Ele cresce buscando sempre estar próximo da mãe, chamar a atenção dela, que, embora tente disfarçar, mostra afeição somente pelos outros filhos. Quando o pai viajava, ele dormia aos pés dela, sem que ninguém notasse. Já rapaz, dorme, um dia, embaixo da cama dela e, num instante de loucura, tenta possuí-la: Ele, em um repente transtornado, abraçou suas pernas, dizendo-lhe coisas com uma voz rouca a crescer em falsete. Ela reagira e, não conseguindo desvencilhar-se, puxara-lhe pelos cabelos e gritara para ele parar. Sua voz estava amedrontada. Ele a abraçava sôfrego tentando beijá-la. A mãe lutava para soltar-se,mas ele a dominava (p46). Ele tem vários filhos com as filhas dos agregados. Esse fato afasta ainda mais mãe e filho e ele passa a dormir em um quarto fora da casa.

Bisneto leva Custódio para a serra, já com 37 anos, numa tentativa de ajudá-lo. Lá, ele conhece Eugênia, afilhada de Bisneto e se casa com ela. Volta para a Trindades, onde tem 4 filhos: Ana, Beatriz, Elvira e o temporão (mais de dez anos mais novo que Elvira, será afilhado dela). Quando as meninas vão-se pondo moças, volta o comportamento doentio de Custódio: uma vez, força Ana a ir cavalgar com ele até o açude e ela volta chorando, mas esconde os motivos da mãe. Em outra noite, a acaricia na rede, conforme revela a Casa: Vi esgueirar-se pela porta do quarto de Ana, que já adormecera, seu pai. O fino véu que cobria a rede foi por ele afastado, emaranhando-se, e Custódio, aprumando as mãos trêmulas, tateara aquele corpo de menina ali descoberto (p64). O mesmo acontecia às outras meninas: Ana não soube o que se passou dois anos depois com a irmã Beatriz, e ela pensava que só com ela o pai agia daquele jeito que tanto a atemorizava com suas mãos pesadas, que a machucavam ao apalpar-lhe sôfrego todo seu corpo, fazendo-a chorar (p64). Um dia Elvira, a mais nova, conta às irmãs sobre as investidas do pai e, juntas, elas resolvem contar à mãe, que abandona o marido e vai embora de volta para a Serra com seus quatro filhos.
A mãe de Custódio morre, e ele, já abandonado pela esposa e pelos filhos, bem como pelos irmãos com quem se desentendeu por causa de herança, se desespera, deixa a barba e o cabelo crescerem e passa a rezar de joelhos no oratório. Volta a dormir no quartinho fora de casa. Com um tempo, fica parecendo um beato e, quando sua madrinha morre, desaparece de vez da Trindades, numa noite idêntica a de seu nascimento: absoluta, fechada, e silenciosa, em que a escuridão tudo envolvia parecendo um ser vivo, latente... (p69).

Após a história de Custódio, tem-se o retorno de Bisneto à Casa, onde padece de um cobreiro. Eugênia é quem cuida dele com dedicação, contando-lhe histórias, como a do “Menino com rastro de pluma” É ela quem herda a aquarela pintada pelo “amigo” de Bisneto. Ele morre sob os cuidados da afilhada e o espelho se parte como se encerrasse um ciclo.

Já finalizando o seu relato, a Casa diz que foi doada “de porteira fechada”, que está abandonada, servindo de pouso para animais e cangaceiros, sendo depredada por vândalos. Confessa que a sua estrutura está comprometida e conta da visita de alguns jovens, entre os quais se destaca uma moça, de nome Eugênia, a trisneta de Eugênia e Custódio. Ela é uma historiadora e, segundo o relato, conhece toda a história da casa e das vidas que por ali passaram. Há, inclusive, a sugestão de que ela contaria as histórias ali vividas por seus antepassados, quando um amigo dela diz: Ela anda enveredando por um ensaio sobre nossas superstições, daí tanto sobrosso, terminará contando a história desta casa e será este o seu terceiro trabalho. - Eugênia riu, franzindo o nariz em uma careta: Jamais deux sans trois, assim dizia minha mãe. Quem sabe seja agora o tempo de escutar o que as paredes da Trindades tanto ouviram. (p87). A narrativa termina com o prenúncio do seu início, dando a ilusão de uma narrativa cíclica. Finalmente, a Casa fica dentro da bacia hidráulica, quando uma barragem é construída em torno do remanso. Quando as águas adormecem, na Hora-Grande, ela sonha ser uma aquarela.

A narrativa finda com versos que parodiam os do final das histórias da Carochinha (“Entrou pela perna de pato, saiu pela perna do pinto...”), bem próprios, também, dos contadores populares de histórias:
“E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei”

ASPECTOS POSSIVELMENTEA AUTOBIOGRÁFICOS

O construtor da casa: Um português do Entre-Douro e Minho, Francisco José Gonçalves Campos, o primeiro dono, tem o mesmo sobrenome de Natércia.
Eugênia, a historiadora, trisneta de Ana tem interesse, como vimos, na história da Casa e, de acordo com o seu companheiro, se interessa por superstições e terminará contando a história desta casa e será este o seu terceiro trabalho. E é a própria Eugênia quem diz: Quem sabe seja agora o tempo de escutar o que as paredes da Trindades tanto ouviram. (p87). Pois bem, A casa é a terceira obra de ficção de Natércia, que é a autora do livro que dá à Casa a oportunidade de contar a sua história e tudo o que suas paredes “ouviram” no decorrer do tempo.
“Talvez,no romance A Casa, ‘os segredos múltiplos da reminiscência, o mundo que vive em nós, obscuro e palpitante’, na palavras do mestre Luís da Câmara Cascudo, ajudem-me a ampliar esta singular saudade dos sertões da terra” (Natércia – 28-5-99)

ESPAÇO

Não há uma localização espacial exata do lugar em que a casa foi construída, sabe-se apenas da descrição geográfica do lugar em que o seu terreno se situa:
Fiquei muito abaixo da Serra dos Ventos onde foram colocados antigos marcos de posse de pedra bastarda de sete palmos, demarcando as sesmarias daquela “terra descoberta” onde muito depois homens plantaram solares e café, escondendo estes últimos na sombra protetora das ingazeiras nativas.(p11)
Disto léguas da terra onde as pedras se encontram. Suas fragas imensas, pagãs por não terem nome, ali ficaram quando as águas baixaram, guardando nelas veios de liquens. Eram elas velhíssimas, já aqui viviam muito antes de ecoar, em longínquas montanhas, bosque e sobre as águas do mar Egeu, O Grande Grito pela morte de Pã e dos Deuses, quando o canto do galo anunciou a chegada do Menino (p11)
Essa alusão ao advento do Cristianismo, com o nascimento do menino Jesus, e a conseqüente “morte” do paganismo mitológico, representado pela figura de Pã, é apenas uma referência à antiguidade das pedras que a cercam, não dimensiona o tempo narrativo, tampouco o espaço.
A descrição geográfica de seu terreno é sempre reiterada:
Na mais serena da horas canônicas, chamaram-me de Trindades. Como tempo puseram-me o apelido de Casa Grande e, assim, de sobrenome, com minhas paredes grossíssimas e madeirame pesado, fincada neste remanso entre serrotes, perdida na imensidão da caatinga e dos céus...( p15)
A referência ao mar e à cidade de Canidé possibilita-nos inferir que a Casa foi construída no nosso estado, não tão distante do litoral:
“Meu filho viajou em busca de outros ares, para a casa de meu irmão, seu padrinho, encravada naquela mata de cajueiros próxima do mar” (p57)
Assim foram as palavras usadas para que o Bisneto se rendesse satisfazendo a curiosidade do amigo. Partiram nos finais de setembro no rumo do sertão de Canidé.
A narradora fala, ainda, de Vento Nordeste e Vento Araka’ti, próprios da região do nordeste.

TEMPO (em que se passa a história)– Longínquo: Meus alicerces foram feitos muito depois que a lagoa de águas salinas se evaporou (p11).

TEMPO (narrativo) – Não cronológico – tempo psicológico (da memória da casa)

PERSONAGENS:

Tia Alma – Nunca perdoou o vento pelo fato de não ter casado, morreu centenária. Ajudou a criar sobrinhos e afilhados. Muito religiosa. Dizia ser protegida pelas almas. Via-as constantemente “Certa vez levantara-se a correr, dando voltas ao redor da grande mesa atrás de um menino que só ela avistava” p29. Teve uma morte serena e, após anos, quando foram fazer o traslado dos ossos, ela estava tal qual foi enterrada. Um vento repentino desceu naquele momento e desfez em pó sua imagem e dela restaram suas duas tranças, longas, fartas e claras. Não mais a enterraram, pois alguém, ao esfregar as suas pontas entre os dedos, sentiu o crepitar sedoso daqueles fios palpitantes de vida. Foram estas tranças as primeiras relíquias daquele sertão (p32).
Bisneto – Homossexual – Era o Bisneto ainda um menino quando com um primo mais velho, em baixo do vão da escada, praticaram a posse inversa. Ninguém os viu, só os ventos e eu testemunhamos. Era o bisneto o invertido (p32). Era gêmeo; a irmã morreu e ele incorporou sua sensibilidade: O Bisneto viera gêmeo com uma menina, mas dela roubara suas forças na barriga da mãe e só ele de lá saíra com vida. Da menina ele trouxera a natureza sensível e delicada que tanto sofrimento lhe causou perante o pai, tios, irmãos e primos. (p34). Trouxe um espelho de Veneza. Padrinho de Eugênia, que se casou com Custódio, filho de uma de suas primas. Separada, Eugênia cuida dele até vê-lo morrer consumido por um cobreiro. Ele cresceu ouvindo histórias e adorava escrevê-las, nas noites de insônia, mas nunca as mostrava.
Custódio - Nasce após três dias de sofrimento da mãe, “de face”, com seis dedos em cada mão. No momento sagrado do nascimento, a mãe, em dor descomunal, o amaldiçoa. Sua irmã mais velha e solteira, a madrinha, pede em vão que ele desfaça a maldição e abençoa a criança. O menino nutre um amor doentio pela mãe que o rejeita e, uma noite, a ataca em sua cama, aumentando ainda mais o sentimento de rejeição que ela tinha por ele. Casa-se com Eugênia, com quem tem quatro filhos. Assedia e “molesta” as três filhas, motivo pelo qual a mulher o abandona. Cria cizânias entre os irmãos, e acaba, como eles, perdendo os bens herdados. Quando a mãe morre, se isola, deixa a barba crescer e desaparece numa noite tenebrosa, tal a que nasceu.
Eugênia – Nasceu empelicada, tinha um ar de leveza, quase feliz (p70). Afilhada de Bisneto, casa-se com Custódio, aos 16 anos, com quem tem 4 filhos: Ana, Beatriz, Elvira e o menino que não tem nome. Quando sabe que o marido molesta as três filhas, separa-se e volta para a Serra. Cuida de Bisneto até a morte dele e é quem guarda a aquarela da Trindades, herdada, posteriormente, por sua trisneta Eugênia.
Ana, Beatriz e Elvira – Filhas de Eugênia e Custódio. São molestadas pelo pai, que tinha preferência pela mais velha por parecer com a mãe dele.
Eugênia – Aparece no final da história. É bisneta de Ana e trisneta de Eugênia e Custódio. É historiadora, tem interesse nas histórias de seus antepassados e conhece a Casa pouco antes de ela ser tomada pela barragem. É a primeira que vê a casa submersa nas águas. Como a trisavô, nasceu empelicada.
A mãe de Custódio - o pai dela era de longe, veio para cassar-se com uma das moças da casa e teve 3 filhos: ela, a solteira (madrinha de Custódio) e um rapaz que morava próximo à pancada do mar. Custódio é o filho mais velho, há o Pedro (casado com Maria), o marido de Emenreciana (o mais “ensimesmado”) e outros cujos nomes não são citados.
Irmão (mais ensimesmado) de Custódio – casou-se com uma bela moça – Maria. Após o suicídio dela, ele vai embora para a casa de um tio.
Maria – Cunhada de Custódio. Tem mania de limpeza e organização (Transtorno Obsessivo Compulsivo – TOC). Muda toda a arrumação da casa. Tem uma gravidez psicológica e, frustrada pela impossibilidade de engravidar, comete o suicídio por enforcamento.
Pedro – Irmão de Custódio, casado com Emerenciana.
Emerenciana - moça cheia de vontades, que tem uma perna mais curta. Ela se hospeda na casa de Pedro e vai à sua cama à noite, seduzindo-o e convencendo-o a casar-se com ela – teve 3 filhas. Uma dormiu com o noivo da prima e engravidou dele. Emerenciana fez muitas das reformas que tanto desagradaram a Casa.
O Pintor – “amigo” de Bisneto, pinta uma aquarela da Casa.
O passador de gado – Vive pelo mundo a tanger gado e contar histórias.
Anselmo – sobrinho mais velho de Custódio, tomava conta de pássaros. Cuida da casa durante algum tempo.
Cosma – velha empregada da mãe de Custódio. Perdeu um filho (Francisco) no açude misterioso. Sabe do assédio de Custódio à mãe e aconselha-a
Outros nomes de empregados são citados: velha Jacinta, velha Josefa, negra Damiana (contadora de histórias).

INFLUÊNCIAS:
Assimilação das leituras de Luís da Câmara Cascudo - “Dicionário do folclore brasileiro”, Monteiro Lobato – “Contos de Andersen” (Irmãos Grimm e Perrault), Esopo e La Fontaine (fábulas).

SUPERSTIÇÕES, CRENÇAS E PROVÉRBIOS
A própria narradora declara tacitamente o misticismo que envolve a sua história e justifica-o:
Nesta terra os encantos e a superstição, que em tudo se imiscui, diferiam das lendas trazidas pelos homens brancos e negros de outras terras e greis. Foram as lendas despertadas à luz do candil, nas noites velhas, pela voz dos contadores de histórias. (p12)

Vejamos algumas superstições e alguns provérbios:
- A ausência do duplo refletido no espelho é sinal de morte próxima (p30)
- A “pedra de lioz”, fixada na soleira da casa, protege os domínios familiares. (p9)
- Não se deve passar a mão nos cabelos ao despertar de um bom sonho, pois este virá a se perder esfumaçado e esquecido nas voltas da memória (p 27)
- As almas do purgatório só no Natal e na Sexta-feira da paixão têm direito de ouvir os anjos a rezar (p29)
- Não se deve pronunciar o nome de alguém que já morreu para não interromper seu repouso, fazendo-o voltar. Antes do nome ponha a palavra – finado -, pois ele ao ouvi-la saberá sua nova condição (p29)
- Na Hora-Aberta (12h.) todos os demônios libertam-se, pragas e rogos são atendidos pelo céu. A pessoa deve fazer sesta (é a hora em que Pã adormecia) ou estar debaixo do teto de sua casa.
- A criança que nasce empelicada tem boa sorte.
- Quem chora na barriga da mãe se torna profeta (Bento, o profeta p16)
- Filho com nome de santo não dá sorte, é uma afronta a Deus, pois para ser santo aquela criatura teve de padecer, então é mesmo que chamar sofrimento para o filho (p47)
- O mês de agosto é um mês de luar mágico, de céu escampo, varrido de nuvens pelos ventos desenfreados, sem rédeas, neste mês que assistiu a tantos martírios de santos homens. (p55)
- O que é de raça caminhando passa (p48)
- A conduta já vem plantada em cada um de nós, já chega assim decretada.
- O silêncio do invejoso é ruidoso demais (p48)

AS HISTÓRIAS DENTRO DA HISTÓRIA

"A história do encoletado" (Contada pelo passador de gado a Bisneto e ao Pintor, seu “amigo”)
A casa dá voz ao velho passador de gado, enquanto recorda o dia em que ele passou por lá e contou a história do encoletado a Bisneto e ao pintor: o velho diz ter presenciado cenas pavorosas ocorridas em terras do Capitão Longuinho, um sujeito poderoso e vingativo. O Capitão, conhecido por suas tiranias e posses, é casado com uma moça 40 anos mais jovem, cujo pai recebeu léguas de terra e gado, numa espécie de escambo entre a filha e as propriedades. Um primo da moça aparece na fazenda para fazer negócios de gado com seu marido, e como nutriram afeto um pelo outro no passado, eles se vêem tentados pelo “proibido” e fogem juntos. Capitão Longuinho manda rastreá-los e seus capangas os trazem de volta. Ele corta o cabelo dela a facadas, deixando-a ferida e desfigurada, e a devolve ao pai. Tortura o rapaz até a morte, mandando costurar em seu corpo um colete de couro fresco, recém tirado do animal: Este era um gibão informe, sem feitio, trazendo ainda o cheiro de sangue e carne do animal abatido (p41). O couro começou a encolher, sufocando o corpo do rapaz: Foi morte lenta e supliciada daquele rapaz ali aprisionado, naquela couraça mal cheirosa, ao sol, sendo arrochado, provocando nele,já mais pro fim, golfadas de sangue. ... A vestia fosca tornou-se sua mortalha sem dela poder mais apartar-se ... O demônio do velho mandou jogá-lo no pasto para repasto dos animais sem o direito sagrado do último repouso.(p42) O passador de gado conta que, antes de sair daquelas terras malditas, enterrou o corpo apodrecido e que nunca mais nada de mal lhe aconteceu porque tem a proteção do “Morto Agradecido”.

"O Menino de rastro de pluma" (Lida por Eugênia para Bisneto)
Um dia antes da morte de Bisneto, Eugênia lê a história do Menino de rastro de pluma para ele. Ela conta que Lá para os confins do Reino das Pedras, escondido pelas furnas escarpadas de Aacauã ele nascera (p72). Ele pisava tão leve que não deixava rastro. Vivia só, com sua mãe e sobreviviam da caça, de forma bem primitiva. Um dia, ele pressente e confirma a chegada do cigano (supostamente o homem que o gerou e foi embora), cujo rasto ele acompanha até a casa de sua mãe. Confirmando a presença do “pai”, ele sai sem rumo, volta para despedir-se e vai embora. Ela o presenteia com seus instrumentos de caça: a espingarda, o bandaneco, a quicé e o fumo. Ele segue sem rumo definido, passa por privações e encontra como meio de vida a função de rastejador de cobras, que não deixa de ser uma forma de rastejar a morte. Na noite em que resolve encerrar o ofício, sofre o bote de uma delas e morre. A marca de seus rastros finalmente se revelam no chão batido e é através dela que os vaqueiros o encontram morto na caverna em que se refugiou.

ALGUMAS REFERÊNCIAS

Moça Caetana, Ela – A morte
A Moça Caetana remete ao mito da Onça Caetana. Segundo Nogueira (2002 p36), A onça é o animal mitológico mais importante, identificado com a morte violenta que, no sertão, é chamada Caetana. Trata-se de uma divindade tapuia-sertaneja, que, de acordo com Suassuna (1977 p11), é “bela, imortal e eternamente jovem, dotada daquela beleza ao mesmo tempo cruel, terrificante e fascinadora que é própria de sua hierarquia divina”
Hora Aberta – meio-dia
Hora Grande – meia-noite
Hora do Assim-Seja – Hora das decisões
Hora da Ave-Maria – Seis horas
Velha-do-Chapéu-Grande (o empalhador de cangalhas) – a seca (a fome).
A hora das Trindades – quando a estrela Vésper brilha no céu (meia-noite).
Brincadeiras: peteca, pião, cabra-cega, trava-língua, cantiga de roda (p61)
Pai-Pina – atraía a chuva
Bento – profeta, curandeiro (chorou na barriga da mãe)
Tasgo – espírito caseiro que persegue as mulheres tecedeiras, enovelando suas meadas (p25)
Histórias de Trancoso – Desde menino gostei de ouvir as histórias contadas por meu avô, as de Trancoso da negra Damiana e as do mundo vivido pelo passador de gado (p72)
Cabala – o número três traz em si um sentido obscuro (p21)
Neo-Simbolismo – referência à Grande Peste (p21)
Seca e Êxodo – Longo foi o tempo sem chuva e de estranha solidão de sons, pios e vozes... Os vaga-lumes apagaram-se na Grande Seca, e quando isso ocorreu, soube que fora abandonada. (p23)
Cena Naturalista: Invasão de morcegos (p23); o morcego suga o sangue da criança adormecida (p24)
Sebastianismo – A almas benditas de Tia Alma (“os três encantados e seus preferidos): “o eremita São João, que se alimentava de mel, gafanhotos e hoje dorme profundamente no céu; São Jorge, o vencedor de dragões e salvador de virgens cativas, guardião da lua, defensor das almas, das tentações, patrono de sua terra hoje tão longínqua e o príncipe guerreiro Dom Sebastião, mas este, tinha ela fé que, em um dia de bruma, chegaria no seu cavalo branco vindo de sua ilha encantada. (p26)
Sobrenatural – Tia Alma conversa com as almas, seus cabelos não morrem, seu corpo só se desintegra após anos enterrado, quando é desenterrado. O açude geme para anunciar as tragédias: ... ouço o gemido vindo das águas profundas do açude dele que nele se estrepou um menino. É ouvi-lo para que alguma tristeza se desencadeie e quem o escuta sabe que haverá luto (p33).
Movimento armorial – Agora não era mais tão necessário ferrar o gado no seu lado esquerdo, para mostrar a marca da ribeira onde se localizava a fazenda. O sertão não era mais a vastidão de terras sem limites, começara a ser demarcado com cercas e arames farpados. Prevalecia só a marca única do proprietário no lado direito da rês. (p84).
(O Movimento armorial foi criado por Ariano Suassuna (com um grupo de escritores e artistas), em 1970, e objetiva valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro através da realização de uma arte brasileira erudita criada a partir das raízes populares da nossa cultura. Segundo Ariano, armorial tem ligação com “essa heráldicas raízes culturais brasileiras”)
Temas polêmicos – incesto, pedofilia, homossexualismo, obsessão (TOC).
- A morte - por doença (Bisneto), afogamento (Francisco), suicídio (Maria), crime (amante da esposa de Capitão Longuinho), mordida de cobra (o menino do rastro de pluma).

PERSONIFICAÇÕES
A Morte aparece como personagem da história, e é referida pelo pronome pessoal Ela ou pelo nome de Moça Caetana. A sua chegada é sempre descrita como a chegada de uma pessoa. A forma como a narradora se refere a ela, personificando-a na figura de uma mulher através do pronome pessoal Ela, remete à forma que o contista Moreira Campos a apresenta no conto Dizem que os cães vêem coisas, do livro homônimo.
Era uma noite de luar, ela (Maria) com extrema cautela saiu do quarto e retornou com o tamborete da cozinha. Surpreendi-me ao sentir que, ao voltar a bela Maria para seu quarto, Ela viera na sua companhia. Ambas trancaram-se, aferrolhando a grande porta. Valeram-se de um dos armadores para pendurar juntas a corda retirada de dentro da canastra... Houve um demorado espanejar. Do quarto Ela saiu com aquela vida, deixando ficar seu rastro no torturado rosto de Maria. (p55)
Igualmente o Vento tem um desempenho fundamental: é ele quem conta à casa de sua solidez, é quem indica a chegada próxima de algum vivente, é quem avisa dos perigos e anuncia os presságios, função que é compartilhada como o Açude, que geme sempre que algo de ruim vai acontecer, sobretudo quando a Morte se abaterá sobre alguém.
Foram os ventos que me contaram histórias, me deram ciência. Na época da grande volta dos ventos, depois de agosto sempre de céu escampo, , se podia ouvir nas encruzilhadas como seria o tempo no ano vindouro. Foram eles nos seus cicios que me disseram da magia e força das palavras pronunciadas a desalojar o que está emparedado, acordando reminiscências, atiçando a memória (p10)

DIÁLOGO COM OUTRAS OBRAS

"A Fome "(Rodolfo Teófilo) – Aprendi que os homens não percebem o que lhes pode suceder dentro de suas casas, pois certa noite de muito calor vi emaranhar-se no fino véu da rede, onde dormia a menina de alguns meses, o pesado morcego. Aquela massa em movimento, de cor marrom-pardo, sobressaía ainda mais no véu branco. Conseguira entrar na rede e se arastara desequilibrado, tateando pelo pequeno corpo, aprumando suas membranas, dando curtos saltos na tentativa de vôo e por fim sugou-lhe o sangue. ... Nenhuma delas enxergou à luz das candeias as finíssimas pontas do par de incisivos na virilha da menina. (p24)
"Contos da Montanha" (Miguel Torga) – Falava ele das lendas da vizinha Galícia, próxima do seu Minho, onde a Virgem deixara nas pedras à margem de um rio suas santas pegadas; do caminho sacrossanto de Sant’Iago; das “mudanças de habitação” das necessidades de pastagens; das migrações sazonais; das épocas do plantio; das florações; dos cheiros enraizados do restolho das ceifas; do doce rosmaninho; dos verdes e misteriosos soutos de castanheiros; das aromáticas giestas; dos altos choupos; das resinas dos nevoentos pinheirais; dos apascentas rebanhos na velha abeogaria; das águas sempre fartas e rumorosas dos rios entre os vinhedos; das águas das sangas; da caleira; da ria contida e dócil nos seus inúmeros veios; das fontes límpidas (p18)
"Inocência" (Visconde de Taunay) – Ela bem moça, a mando do pai, casara já fazia algum tempo com este Capitão Longuinho. Para isso houve vantajoso escambo entre o pai dela e o dito Capitão. A moça valera léguas de terra e gado... A moça era uma boniteza só. Foi quando aparecera na fazenda um primo dela... Alguém soubera que, desde crianças, havia entre ele e a prima um grande bem-querer... Esquecidos pela loucura, a cegueira, que vem com a paixão.. fugiram os dois no rumo de sua própria perdição. (pp40-41) O rapaz é assassinado, como Cirino.
" Cecília Meirelles" – lirismo: Construíram-me entre serrotes e acima de mim passaram pequenas nuvens, fiapos de algodão que se agrupam,ampliam-se... O mais belo dos céus é quando ele se transforma em extenso campo de plumas brancas e o azul fica a vagar esmaecido.(p11)
"Palimpsesto" (Virgílio Maia) – Hora das Miragens. Não se deve olhar para trás (p10). Lembra “Visagem” (soneto de Virgílio Maia). Há um soneto de Virgílio dedicado a Natércia ( Soneto com mote de Natércia Campos) e outro dedicado a Trindades (Soneto d’a Casa d’as Trindades). Leiamos o último:

Aquela casa, aquela construída
Para romper os séculos-amém,
No alvor do esguio oitão mostra também
Uns gestos de chegada e de partida

Guarda a sacralidade de um ermida
Quando raro perfume às vezes vem
Juntar-se aos vagos vultos que ninguém
Ousa apostar se desta ou da outra vida.

A tarde traz balidos tão tristonhos
Ouvidos, longe assim, como que em sonhos
Na sala de visita.
E o Bom Pastor

Talvez nem mais assista àquela casa,
Ou, talvez, quem dirá, talvez que jaza
Na memória beirã de um bisavô.

"As Corujas" (Conto de Moreira Campos, do livro Dizem que os cães vêem coisas) – Tempo em que das corujas não se comia sua carne, pois ainda não sabiam que esta lhes daria poderes de adivinhações. A crença agoureira da morte pousou nesta terra sobre as asas da pequena coruja alvacenta, a Rasga-Mortalha, cujo grito fazia lembrar um pano resistente rasgado com brusquidão. Era esta coruja de canto lúgubre voar baixo e insistente sobre uma casa onde houvesse um doente de cama, para se acatar seu prenúncio. (p13)
"Dizem que os cães vêem coisas" (Conto de Moreira Campos, do livro homônimo) – Lembro da primeira vez, e havia de ser nas Trindades, quando Ela aqui chegou em missão. Uma das portas abriu-se sem que ninguém a empurrasse e nem a frágil aragem a tocasse. Os ventos haviam me alertado que a Morte assim entra nas casas quando, silenciosas e inexplicáveis, as portas se abrem. (p15)
NATÉRCIA: Os cachorros acuam e se enroscam temerosos com o que vêem... (p10)
MOREIRA: Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente nos canis (edizem que os cães vêem coisas). (p153)
Presenciei durante várias gerações a chegada Dela abrindo portas, refletindo-se no grande espelho ao invadir meus espaços e muito aprendi sobre suas metamorfoses e disfarces. Nem sempre entra translúcida e repentina como da primeira vez que aqui chegou. Por vezes se instala pesada como o fardo de uma cruz... (p17) A primeira vez foi a Morte de uma criança, por isso ela estava “translúcida”.
"Lamas e Folhas e Dizem que os cães vêem coisas" (contos do livro homônimo) – morte de criança por afogamento: junto à fria cruviana, ouço o gemido vindo das águas profundas do açude dele que nele se estrepou um menino. (p33) "Iluminuras" (livro de contos de Natércia – intertextualidade homo-autoral)
A chama de luz aqueceu-lhe a alma, afastando-lhe as sombras. Aproximando-se da casa escutou a voz serena da menina: “canta Maria a melodia singela./ Canta que a vida é um dia...” (Iluminuras p19)
Cantarolava baixinho ao aguar suas flores, inclinando seu longo pescoço, olhando-as como se acarinhasse seus ramos: “Canta, Maria, que a melodia é singela,/ canta que a vida é um dia, / que a vida é bela, linda Maria” (A Casa p50)
O tempo passou, sarou mágoas e dores, deixando, no entanto, a latejar as imorredouras e doídas cicatrizes,na terra e nos seres. (Iluminuras p27)
O amor e desvelo para com seu padrinho sobrepujaram nela as perdas, as mágoas. O tempo também se alíara para amenizá-las. Dizem que ele só não cura – velhice e loucura. (A Casa p70)

Bibliografia
CAMPOS, Natércia. A Casa. Fortaleza: Editora UFC, 2004
_________________ Iluminuras. 3a. ed. Fortaleza: Premius, 2002.
NOGUEIRA, Ma. Aparecida Lopes. Ariano Suassuna, O cabreiro tresmalhado. São Paulo: Editora Palas Athena, 2002
SUASSUNA, Ariano. História d’O rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da onça caetana, Rio de Janeiro: José Olympio, 1977

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

“Fragma”, de Cândido Rolim e “Dulcinéia em Hollywood”, de Cherlanyo Barros

A leitura do livro “Fragma”, de Cândido Rolim, é desconcertante. Logo se instala uma perturbação... é que o desafio se impõe da primeira à última página. A indisciplina com a forma, a relação de escassez com as palavras e de amor com as lacunas leva o leitor a uma ginástica mental ininterrupta. São estilhaços de pensamentos, fragmentos de concepções e filosofias que exigem uma (re)construção de sentido para a possibilidade de fruição. O transtorno é próprio da prosa contemporânea fragmentada. Há sempre mais subtexto que texto. Assim, o pequeno livro se agiganta, desaparece a idéia inicial de minimalismo, as construções crescem a cada leitura. Pensamentos, aforismos, nunca se sabe... De um tijolo se vê um prédio. Viagens... É denso e desordena... “forma, contorno, tudo temor de extensão”.

Já “Dulcinéia em Hollywood”, de Cherlanyo Barros, traz histórias curtas, bem costuradas, urbanas e interioranas, mostram a mudividência rural e citadina do autor, que, com igual desenvoltura, transita pelos dois mundos, sem qualquer artificialismo. A contraditória pureza de Quirina, a inusitada paixão de Margarida, a egenhosidade de Rosalina, a imprudência-heróica de D. Socorro, as artimanhas de Julieta e a insatisfação da sonhadora Dulcinéia colocam em evidência personagens femininas, pessoas comuns, ingênuas, mas capazes de tomar posição. As histórias “O casamento de Rosalina Sapiranga”, Joaquim Bonequeiro”, “O rádio” e “Zequiel e a bodega” dão vivas à ficção regionalista e resgatam o universo interiorano, com suas figuras emblemáticas: O coronel prepotente, a falsa beata, o bodegueiro, o bonequeiro. Gostei especialmente de “Amor de peixe”, um conto bastante simbólico, que mostra a solidão e a insatisfação do homem contemporâneo, e “Desilusão”, que, por outro viés, também mostra a insatisfação humana e, especialmente, o desejo pelo inatingível, que também está latente na personagem Dulcinéia. Muito bom!

Crimes (quase) perfeitos: o intertexto em Pedro

A leitura de dois livros de contos: O peso do morto e Brincar com armas, de autoria de Pedro Salgueiro, deu-me a oportunidade de perceber a quantas anda o conto cearense contemporâneo. Os primeiros textos lidos já me deram uma noção do seu estilo bem resolvido, vigoroso, que fala sem a voz embargada dos experimentalistas (Nada contra os experimentalistas).

Iniciei minha aventura com o Brincar com armas, cuja capa já constitui um intrigante motivo para a leitura. A parte um (do Livro primeiro) justifica o título da obra de forma literal: o leitmotif são crimes de vingança, por legítima defesa ou por acidente, todos cometidos com armas letais. Neles Pedro inicia o processo da dinâmica homo-autoral, estabelecendo o diálogo entre os seus textos, através da recorrência a temas, argumentos e motivos narrativos. Vitor Manoel de Aguiar e Silva (1991 p.630), ao enfocar essa técnica, diz que ela constitui uma espécie de auto-imitação marcada tanto pela circularidade narcisista como pela alteridade e que ao auto-imitar-se, o autor se mantém o mesmo quando já é outro.

Pedro faz com que o leitor, ao ler seus contos, percorra o caminho de volta e recorra a histórias anteriores, como para ter um esclarecimento ou, no mínimo, a curiosidade de rever como o que está sendo dito já foi dito. É, como colocou Albert Cammus (apud CULT:27) uma conversa entre os textos, seus olhares mútuos, que são claramente percebidos.

Explico melhor: O narrador de O olhar parece-nos o assassino de A volta. Claro que há alguns dados escamoteados, mas o leitor atento percebe a relação dialógica entre as duas histórias. O mesmo ocorre com Em família e Ausência, quando o narrador enfoca a morte da matriarca e a reclusão do viúvo. Igualmente acontece em Ontem e Hoje, cujos títulos já denotam a demarcação temporal de um fato presente e passado, no caso, a opressão familiar exercida pelo patriarca e a liberdade a partir da invalidez ou da morte dele. O intertexto está presente, de forma ainda mais elaborada, nos contos O pânico e A rosa encarnada, ambos com a atmosfera misteriosa bem ao estilo de Edgard Allan Poe, que influencia, incontestavelmente, outros contos da Parte dois.

Assim, ele vai criando um painel de seres fictícios enredados na segregação de culpas, nos silêncios, na loucura, na solidão, nos segredos, nas doenças, na opressão do meio ou da família, enfim, todos lacerados pela vida, de forma, podemos dizer, irremediável.

No Livro segundo, senti a sombra de José J. Veiga, um dos maiores nomes da prosa fantástica e alegórica do nosso pós modernismo. A mesma atmosfera de Sombras de reis barbudos e de A estranha máquina extraviada (os contos do livro, não exatamente o conto homônimo) perpassa os nove contos, sem que haja a interferência do elemento fantástico, mas apenas do mistério. O narrador parece único em todos os contos e é uma criança como o da maioria dos contos de Veiga. O sentimento de perseguição, a presença de uma “Companhia” (leia-se A usina atrás do morro, de Veiga), o mistério do desvio do trilho do trem do vilarejo, as investigações, a estranheza do comportamento das pessoas parecem simbolizar algo, metaforizar uma situação. Pude achar que não estava delirando quando vi nO peso do morto o conto Os loucos de Papaconha dedicado aos “novos comunistas”: Metáfora? Alegoria?

Senti ainda a influência de Dalton Trevisan nos contos de O espantalho e no elucidativo Daltonianas em fá maior (de Brincar com armas). Assim, vão ficando claras as referências de suas leituras, de suas influências, o que dá consistência ao seu estilo enxuto e forte, que não é decorrente da pura intuição, mas de um trabalho de linguagem consciente, com o conhecimento de técnicas e muita, muita criatividade. São “crimes” perfeitos. Vale conferir.