quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Crimes (quase) perfeitos: o intertexto em Pedro

A leitura de dois livros de contos: O peso do morto e Brincar com armas, de autoria de Pedro Salgueiro, deu-me a oportunidade de perceber a quantas anda o conto cearense contemporâneo. Os primeiros textos lidos já me deram uma noção do seu estilo bem resolvido, vigoroso, que fala sem a voz embargada dos experimentalistas (Nada contra os experimentalistas).

Iniciei minha aventura com o Brincar com armas, cuja capa já constitui um intrigante motivo para a leitura. A parte um (do Livro primeiro) justifica o título da obra de forma literal: o leitmotif são crimes de vingança, por legítima defesa ou por acidente, todos cometidos com armas letais. Neles Pedro inicia o processo da dinâmica homo-autoral, estabelecendo o diálogo entre os seus textos, através da recorrência a temas, argumentos e motivos narrativos. Vitor Manoel de Aguiar e Silva (1991 p.630), ao enfocar essa técnica, diz que ela constitui uma espécie de auto-imitação marcada tanto pela circularidade narcisista como pela alteridade e que ao auto-imitar-se, o autor se mantém o mesmo quando já é outro.

Pedro faz com que o leitor, ao ler seus contos, percorra o caminho de volta e recorra a histórias anteriores, como para ter um esclarecimento ou, no mínimo, a curiosidade de rever como o que está sendo dito já foi dito. É, como colocou Albert Cammus (apud CULT:27) uma conversa entre os textos, seus olhares mútuos, que são claramente percebidos.

Explico melhor: O narrador de O olhar parece-nos o assassino de A volta. Claro que há alguns dados escamoteados, mas o leitor atento percebe a relação dialógica entre as duas histórias. O mesmo ocorre com Em família e Ausência, quando o narrador enfoca a morte da matriarca e a reclusão do viúvo. Igualmente acontece em Ontem e Hoje, cujos títulos já denotam a demarcação temporal de um fato presente e passado, no caso, a opressão familiar exercida pelo patriarca e a liberdade a partir da invalidez ou da morte dele. O intertexto está presente, de forma ainda mais elaborada, nos contos O pânico e A rosa encarnada, ambos com a atmosfera misteriosa bem ao estilo de Edgard Allan Poe, que influencia, incontestavelmente, outros contos da Parte dois.

Assim, ele vai criando um painel de seres fictícios enredados na segregação de culpas, nos silêncios, na loucura, na solidão, nos segredos, nas doenças, na opressão do meio ou da família, enfim, todos lacerados pela vida, de forma, podemos dizer, irremediável.

No Livro segundo, senti a sombra de José J. Veiga, um dos maiores nomes da prosa fantástica e alegórica do nosso pós modernismo. A mesma atmosfera de Sombras de reis barbudos e de A estranha máquina extraviada (os contos do livro, não exatamente o conto homônimo) perpassa os nove contos, sem que haja a interferência do elemento fantástico, mas apenas do mistério. O narrador parece único em todos os contos e é uma criança como o da maioria dos contos de Veiga. O sentimento de perseguição, a presença de uma “Companhia” (leia-se A usina atrás do morro, de Veiga), o mistério do desvio do trilho do trem do vilarejo, as investigações, a estranheza do comportamento das pessoas parecem simbolizar algo, metaforizar uma situação. Pude achar que não estava delirando quando vi nO peso do morto o conto Os loucos de Papaconha dedicado aos “novos comunistas”: Metáfora? Alegoria?

Senti ainda a influência de Dalton Trevisan nos contos de O espantalho e no elucidativo Daltonianas em fá maior (de Brincar com armas). Assim, vão ficando claras as referências de suas leituras, de suas influências, o que dá consistência ao seu estilo enxuto e forte, que não é decorrente da pura intuição, mas de um trabalho de linguagem consciente, com o conhecimento de técnicas e muita, muita criatividade. São “crimes” perfeitos. Vale conferir.

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