quinta-feira, 16 de agosto de 2007

A Poesia do silêncio

Impressionou-me bastante a economia vocabular da poesia de Manoel Ricardo. As palavras parecem pedras polidas, de arestas aparadas. Não é fruto do acaso essa poética visivelmente cerebral, quase desumanizada, filha da lírica moderna. É inegável a assimilação de suas leituras e a influência do crítico (que ele também é). Intuo Mallarmé, sussurrando aos seus ouvidos, na composição de cada verso: “poesia se faz com palavras, não com idéias”. Mas Manoel não é tão obediente, faz poesia (também) com idéias, ainda que imersas no peso das palavras, peças fundamentais, concretas. Não é à toa que elas aparecem “embrulhadas”, contidas no invólucro que ecoa logo na sugestão do título do seu primeiro livro, ou materializadas na objectualização explícita de Falas Inacabadas (objetos e um poema).
Vê-se claramente que a sua poesia não decorre da intuição, mas de uma silente construção, que nos permite entrever a colocação de tijolo sobre tijolo, com a devida medida da argamassa. Arrisco até dizer que a argamassa vem fundida à matéria de cada tijolo, porque não a vejo ocupar espaço. Falo dos elementos coesivos, insistentemente ausentes. Quase toda a seqüenciação é feita no corpo a corpo que as palavras travam umas com as outras. Esse processo criativo comunga com as idéias de Archibald Macleish (apud Harries, 1992:80-1) que afirmava que o poema “não deveria significar, mas ser” bem como com as concepções de feitura de textos dos líricos modernos, sobretudo as de Mallarmé e Valèry.
Outra característica marcante é a subversão das regras de pontuação. Ora os sinais são completamente abandonados, como a deixar a leitura do texto à deriva; ora deslocados para uma posição inusitada (antes e não após as palavras); ora valorizados, ocupando um verso inteiro, absolutos, íntegros, como se assim, deslocados completamente, adquirissem mais força e expressividade. Friedrich (1991:156) considera esse recurso da ausência (ou deslocamento) de pontuação uma forma impetuosa de “evitar ou transtornar contextos e ordens de relação, num claro objetivo de multifacetação do texto”. Com o que eu concordo, haja vista a existência de propósitos estéticos bem definidos na poesia dos líricos modernos e, não obstante, na de Manoel.
A construção consciente do poema revela-se com propriedade incontestável no metapoema “O livro” (Embrulho p.15 ). Entenda-se o poema como uma mensagem do poeta a Carlos Augusto, a quem os versos são dedicados. Dá até para entrever, no subtexto da “mensagem”, a conversa entre Mallarmé e Degas. A cumplicidade poética entre ambos (Manoel e Augusto) é tão evidente que é Augusto quem se manifesta para fazer a “introdução” do poema “Os peixes” (Embrulho p.41) com um poema seu, (a Manoel dedicado). Não é só pela leitura de “Os peixes”, feita por Augusto no poema “epígrafe”, que se percebe o animal aquático como uma metáfora da coisificação, da objectualização de qualquer manifestação sensível. É um belo texto, não à toa o mais longo do livro.
Observe-se a expressividade da parte IV deste mesmo poema, evocada pela interrupção do discurso do último verso. A suspensão do verso não é a suspensão do pensamento. Palavra e peixe deslocam-se e o sujeito-lírico fragmenta-se para não se sentir tentado a dizer o que prefere... decide calar, não arriscar uma verdade que não sabe(?) se é.
Na maioria dos textos só a linguagem fala, o eu silencia. Algumas vezes, entretanto, é possível perceber o que diz Hugo Friedrich (1991 p.211) a respeito da lírica moderna: "Quem é capaz de ouvir, percebe nesta lírica um amor duro, que quer permanecer intacto". Quem ler “Dorso” (Embrulho p.31) concorda com Fridrich. Há, a partir do título, a sugestão de uma sensualidade sutil, comedida, sufocada nas entrelinhas, mas latente, aliciada nas palavras, driblada nos silêncios que gritam. João Cabral de Melo fez parecido em Sevilha andando.
E por falar no silêncio do eu, tenho outra vez de buscar Mallarmé , que almejava o impossível através da proximidade do silêncio. E H. Domin (apud 1991 p.159), que aconselhou em seu poema “Linguistik”: “Aprenda a calar na linguagem”. Manoel sabe bem o que isso significa e, não despretensiosamente, constrói sua poética perpassada de silêncios. Do mesmo silêncio que Elida Tessler, artista plástica gaúcha, sua parceira em Falas inacabadas, sugeriu para os textos que acompanhariam as fotos dos seus trabalhos. Daí a concisão, a suavidade por vezes insular, a constante objectualização da palavra. Houve mesmo um projeto de unir objetos a palavras, quase num desejo de fundi-los ou considerá-los do mesmo “barro”. Os objetos captados por Elida coadunam-se perfeitamente com os textos, numa coexistência perfeita de metades que se completam. Calam-se diante uns dos outros. Outra vez lembrei João Cabral de Melo Neto e sua fixação nas artes plásticas, sobretudo nas de Miró.
Belo o embrulho todo. Corpo e alma. Fundo e forma. Sem respingo, sem excrementos. São visíveis as marcas das leituras do poeta, mas é incontestável sua luz própria. A mim me bastava “Geometria” (Embrulho p. 23) para compreender que Manoel está acima de qualquer influência. Belas as Falas inacabadas e feliz a promessa clara de que os versos continuarão. Confiramos as belas passagens: /o sempre é/ improvável/ e longe/ (Embrulho p.32); / tomar de volta o avião/lições de partir/ (Emb. p.50), /;faz frio fora/calor dentro/ (Emb. p.55); /e/cataloga/estrelas/ (Emb. p.63); /juntar das mãos/a ausência/própria /de companhia.(Falas inacabadas – V), Ficaria dito/:/do que resta morto/ainda vivo (F.inacabadas XIII). Como diz Friedrich (1991 p.190), “Nenhum eu fala /.../ mas a fórmula canta”. Eu diria que o eu pouco fala, mas encanta.
São breves impressões que me obrigam a lembrar o poeta espanhol P. Salinas: “A poesia conta com aquela forma superior de interpretação que reside no malentendido. Quando uma poesia está escrita, está concluída, é certo, mas não encerrada; busca outra poesia em si mesma, no autor, no leitor, no silêncio” (apud Friedrich 1991 p.179). Assim me assolou essa poesia que diz onde não diz e cala o que quer falar, numa forma de não se deixar ouvir. Mas eu ouvi (ou penso ter ouvido, é tênue a fronteira entre o real e o imaginário para os poetas).
Enfim, há mais a dizer, mas calando faço-me cúmplice. Não pretendo enquadrar ou rotular a poética de Embrulho e Falas inacabadas, apenas me senti tentada a comentá-las, pelo prazer que a leitura me proporcionou, e o fiz através de breves impressões que não devem ser vistas como a verdade absoluta. Salinas já advertira da possibilidade de “malentendido” e eu me fio nele e em Jakobson que respalda a minha análise ao afirmar que a poesia é a “linguagem voltada para sua própria materialidade”. Manoel, com certeza, não pensa diferente.

Fortaleza, abril de 2002.



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2a. ed. São Paulo, Duas cidades, 1991.
HARRIES, Karsten. "A metáfora e a transcendência" in: Da metáfora. São Paulo, Pontes, 1992:77-93.
MELO NETO, João Cabral . Sevilha andando (1990) in: Obra completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1994:627-51.

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