"Eu vou esquecer você em Paris", de Carmélia Aragão, é um dos livros mais leves e, ao mesmo tempo, dos mais fortes que li ultimamente. Percebe-se logo o manejo da técnica da narrativa curta e da linguagem sóbria, sem rodeios, por vezes propositalmente elíptica, ora coloquial, ora formal, marcando a diversidade de personagens, enredados em seu universo urbano quase sempre trágico. Os textos são curtos, enxutos, concisos, mas densos.
Na maioria dos contos, há um olhar perscrutador a vasculhar os arredores, um olho nem sempre discreto em busca da vida do outro, em busca do circunstancial para transformá-lo em matéria literária, o que mostra o caráter também metalingüístico da obra.
Os personagens, quase sempre da área de Letras, mostram a mundividência da autora enraizada na criação, o que garante a verossimilhança já que ela se apropria, na ficção, de um mundo sobre o qual tem muito conhecimento. A literatura está toda entranhada em seus enredos: O Morro dos ventos Uivantes, de Emily Brontë; Miss Dalloway, de Virgínia Woolf, Dostoievski, Edgar Allan Poe, Goethe, Nabokov, Baudelaire, Kafka, Dante, Clarice Lispector. As referências aparecem naturalmente, obras e autores da literatura universal fazem parte do universo de seus seres fictícios. Há claro, um empréstimo das preferências da própria Carmélia, leitora madura no exercício de sua paixão.
O primeiro texto da coletânea, “Romance russo”, é a história de um assassino urbano e tem como pilar um romance de Dostoievski. A partir dele, vai se moldando a galeria de personagens que povoam as outras 14 histórias – seres citadinos em eterno conflito com o mundo e/ou consigo mesmos, por conta da avalanche de conhecimentos que a educação requer, da automação da rotina fatigante (Janto, tomo banho, faço café e me abrigo madrugada adentro. Morfema, epzeuxe, biomassa, rendimento, polinômio /.../ Há um escritor chamado Goethe, Nabokov, Baudelaire, Kafka, Dante... /.../ Existo, estou além desse quarto. Sou o princípio – “Holometébulo”). Encontros e desencontros, mediocridade, jogos de interesse (“Quase”), medo (Numa noite sonhei que alguém entraria em nossa casa e nos metralharia, a mim e ao meu marido. Vingança. Vingança porque estamos com medo da cidade, então a cidade entra dentro de nossas casas – ”Feliz Catus”) e solidão são vivências e experimentos constantes a tornar o homem cada vez mais distante do outro e até de si. Em “Crônica do 2º andar”, há o desabafo da vida solitária nos apartamentos, as pessoas se olham, mas não se vêem; vivem sob o mesmo céu, sob o mesmo “abismo de gases”, mas distanciadas pela rotina, pelos receios, pela vida.
O ponto alto do livro é o conto “2003 (Carmina)” - a perfeita fusão da realidade/ficção (e da ficção dentro da própria ficção) cria um mistério kafkiano. Aliás, o mistério é um dos principais fios condutores de alguns enredos, como os de “Pulsos intactos”, “Página 12224” e “A menina que tinha gatos dentro de si”.
O último conto, que dá título à obra, é aparentemente cruel. O relato, que fala do descaso do filho com a mãe, ilustra a desumanização do homem contemporâneo, que não se prende nem mais aos laços sanguíneos. A personagem-narradora, para vingar-se da perversidade do irmão, que a responsabiliza pelos cuidados com a “pobre mãe doente”, leva-a a Paris, com uma ‘mala cheia de jóias’, alvo da cobiça do ingrato, e a abandona lá: “/.../ foi no aeroporto, não tive pena, ela lá, pobrezinha,... Chorei... Chorei... Eu olhava da janela e ela lá, a mala com as jóias dentro. Foi como se eu me livrasse dele, do meu irmão, como se eu o deixasse sozinho, ainda criança, numa rua deserta e desconhecida, como se eu o esquecesse para sempre em Paris”.. Há certa ambigüidade no termo “pobrezinha”: é a mala ou a mãe o objeto de seu abandono? A crueldade, entretanto, desaparece quando percebemos que é a mala, onde ela escondeu “um par de abotoaduras de ouro, um colar de brilhantes e uns anéis” que ela deixa em Paris, como se deixasse o irmão ainda criança. A perversidade ingênua da moça mostra que a perda material, certamente, representaria um desastre muito maior que a perda da mãe para o filho.
São esses seres desestruturados, solitários, massacrados pela vida, que compõem o universo da criação de Carmélia Aragão. Ela consegue, entretanto, não impregnar suas histórias de pessimismo; há um laivo de humor a perpassar os densos fios de sua ficção, a seduzir o leitor e enredá-lo numa prazerosa viagem, não a Paris, mas ao mundo de sua prodigiosa criação literária.
Na maioria dos contos, há um olhar perscrutador a vasculhar os arredores, um olho nem sempre discreto em busca da vida do outro, em busca do circunstancial para transformá-lo em matéria literária, o que mostra o caráter também metalingüístico da obra.
Os personagens, quase sempre da área de Letras, mostram a mundividência da autora enraizada na criação, o que garante a verossimilhança já que ela se apropria, na ficção, de um mundo sobre o qual tem muito conhecimento. A literatura está toda entranhada em seus enredos: O Morro dos ventos Uivantes, de Emily Brontë; Miss Dalloway, de Virgínia Woolf, Dostoievski, Edgar Allan Poe, Goethe, Nabokov, Baudelaire, Kafka, Dante, Clarice Lispector. As referências aparecem naturalmente, obras e autores da literatura universal fazem parte do universo de seus seres fictícios. Há claro, um empréstimo das preferências da própria Carmélia, leitora madura no exercício de sua paixão.
O primeiro texto da coletânea, “Romance russo”, é a história de um assassino urbano e tem como pilar um romance de Dostoievski. A partir dele, vai se moldando a galeria de personagens que povoam as outras 14 histórias – seres citadinos em eterno conflito com o mundo e/ou consigo mesmos, por conta da avalanche de conhecimentos que a educação requer, da automação da rotina fatigante (Janto, tomo banho, faço café e me abrigo madrugada adentro. Morfema, epzeuxe, biomassa, rendimento, polinômio /.../ Há um escritor chamado Goethe, Nabokov, Baudelaire, Kafka, Dante... /.../ Existo, estou além desse quarto. Sou o princípio – “Holometébulo”). Encontros e desencontros, mediocridade, jogos de interesse (“Quase”), medo (Numa noite sonhei que alguém entraria em nossa casa e nos metralharia, a mim e ao meu marido. Vingança. Vingança porque estamos com medo da cidade, então a cidade entra dentro de nossas casas – ”Feliz Catus”) e solidão são vivências e experimentos constantes a tornar o homem cada vez mais distante do outro e até de si. Em “Crônica do 2º andar”, há o desabafo da vida solitária nos apartamentos, as pessoas se olham, mas não se vêem; vivem sob o mesmo céu, sob o mesmo “abismo de gases”, mas distanciadas pela rotina, pelos receios, pela vida.
O ponto alto do livro é o conto “2003 (Carmina)” - a perfeita fusão da realidade/ficção (e da ficção dentro da própria ficção) cria um mistério kafkiano. Aliás, o mistério é um dos principais fios condutores de alguns enredos, como os de “Pulsos intactos”, “Página 12224” e “A menina que tinha gatos dentro de si”.
O último conto, que dá título à obra, é aparentemente cruel. O relato, que fala do descaso do filho com a mãe, ilustra a desumanização do homem contemporâneo, que não se prende nem mais aos laços sanguíneos. A personagem-narradora, para vingar-se da perversidade do irmão, que a responsabiliza pelos cuidados com a “pobre mãe doente”, leva-a a Paris, com uma ‘mala cheia de jóias’, alvo da cobiça do ingrato, e a abandona lá: “/.../ foi no aeroporto, não tive pena, ela lá, pobrezinha,... Chorei... Chorei... Eu olhava da janela e ela lá, a mala com as jóias dentro. Foi como se eu me livrasse dele, do meu irmão, como se eu o deixasse sozinho, ainda criança, numa rua deserta e desconhecida, como se eu o esquecesse para sempre em Paris”.. Há certa ambigüidade no termo “pobrezinha”: é a mala ou a mãe o objeto de seu abandono? A crueldade, entretanto, desaparece quando percebemos que é a mala, onde ela escondeu “um par de abotoaduras de ouro, um colar de brilhantes e uns anéis” que ela deixa em Paris, como se deixasse o irmão ainda criança. A perversidade ingênua da moça mostra que a perda material, certamente, representaria um desastre muito maior que a perda da mãe para o filho.
São esses seres desestruturados, solitários, massacrados pela vida, que compõem o universo da criação de Carmélia Aragão. Ela consegue, entretanto, não impregnar suas histórias de pessimismo; há um laivo de humor a perpassar os densos fios de sua ficção, a seduzir o leitor e enredá-lo numa prazerosa viagem, não a Paris, mas ao mundo de sua prodigiosa criação literária.
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