quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O Amor, mais uma vez e sempre

Quando o amor acontece, os poetas saltam de suas torres e vestem-no com as palavras, cercam-no com seus versos mais belos e celebram-no na eternidade da poesia. Esta fonte inesgotável de inspiração tem atravessado o tempo sem o menor vestígio de esgotamento. Ovídio, no século 43 a.C. teorizando a Arte de amar, já dizia no preâmbulo do Livro Primeiro: “se houver algum homem comum a quem a arte do amor lhe seja desconhecida, que ele leia este poema e que, conhecendo-a através de sua leitura, ame”. Sentimento essencial à existência, foge a qualquer tentativa de definição, já que seu cerne, já o disse Camões no século XVII, é a própria contradição: é fogo que arde e não se ver/ é ferida que dói e não se sente...

As contradições e as dores do amor parecem inevitáveis e em nada o anulam; com dizia ainda Ovídio: Mais violentamente o amor me transpasse, mais violentamente ele me abrase, melhor saberei me vingar das feridas que ele me fez... em vez do lamento danoso tem-se a fonte da poesia e da vontade de viver. Essa ligação amor/dor que tanto despertou a criação dos poetas românticos, no século XIX, está na Bíblia, precisamente no livro dos Coríntios (13: 4-7), onde o apóstolo Paulo diz que “o amor é sofredor, é benigno... tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” Quanto mais resistência à dor, maior o amor será.

Lançando mão de sua rima com dor, ou de sua celebração como um sentimento sublime ou sensual, o fato é que o amor atravessa o tempo como um tema atemporal, o que se comprova com a afirmação do poeta Vinícius de Morais, após a revolução do Modernismo de 22, século XX, escrevendo sonetos de amor, e com a permanência do seu estro nos poetas contemporâneos que o celebram como um tema atual (antigo e eterno, como o diria Moreira Campos).

Tal é o caso do poeta Gildemar Pontes, que traz agora a público, pelas edições Acauã, o livro de poemas Quando o amor acontece... cujo título já anuncia o conteúdo: o que advém do amor quando ele se realiza. Avesso à dor, mas nem por isso isento dela, o poeta dedica-o “a todas as mulheres que não fazem o amor doer”. O que não o impede de acrescentar reticências ao título, conduzindo o leitor a buscar entender, nos versos que se seguem, o que ocorre quando esse sentimento se plenifica, seja pelos apelos da carne, evocando o amor sensual, devorativo (quis devorar-te pelos seios / teus seios eram dias romãs / cresceram para maçãs rosadas / às vezes repousam em minhas mãos/ ou esperam e minha boca / serem lentamente devorados); seja no amor encontro (se minha alma fosse só minha / eu te daria a metade/ como ela é nossa / somos beija-flor e rosa / no caminhos dos encontros); seja no amor desencontro (amar a ti é não sei o quê / que dói na ausência / é insuficiência respiratória que não passa), versos de sopro camoniano, sem dúvida! Seja no amor busca: a alma é a parte desgarrada/ de um deus que espera / outra alma desgarrada / no infinito que procura, versos que lembram outros de uma romântica incorrigível em pleno Modernismo português: “Sou talvez a visão que alguém sonhou, / alguém que veio ao mundo pra me ver / E que nunca na vida me encontrou” (“Eu”). A influência de Florbela Espanca se comprova quando o poeta, a despeito dos desencontros, insiste em cantar a esperança e diz: Minh’alma de sonhar-te anda perdida/e a esperança bate florbelamente em meu peito.

O amor permanece celebrizado, tanto pela lembrança da afeição inocente, que veio aos 9 anos com muitas sardas no pequenino rosto da menina-mulher amada como no primeiro ato, aos 13, com seu primeiro amor sem coração (primeira dor?). As mulheres, deusas de carne e nuvem, são meninas, amantes, mãe, filhas que se vão construindo em forma de palavras, seja pela saudosa passagem (estarei feliz no andar que me levou?), pelo desejo sensual (mas não resisto ao teu sexo em brasa/aqueço minha mão entre o teu sexo/e preparo o dilúvio que vem depois), pela ternura infinita (de ti serei sempre o melhor amigo/a velar teu sonho), pela efemeridade (o dia em que eu te conheci/foi como um relâmpago/nos olhamos/nos beijamos/e pela manhã sumiram os pirilampos), pela paixão avassaladora que o faz enxergar nos olhos da amada dois tigres famintos. As mulheres, belas donas-de-casa, boas de cama, trabalhadoras, intelectuais, bandoleiras, vagabundas, para o poeta, são as partes de um todo, já que mulheres que não valem um vintém/mulheres diamantes estrelas brilhantes/raios de luar/nunca estão todas numa só. Sem preconceito de raça, credo ou comportamento, todas são celebradas e... amadas.


O poeta, embora pareça recusar a dor, como já se disse, transcende-a na forma do poema: eu não queria esta ausência / nem esta distância; [...] eu também sou náufrago em teus olhos/no teu corpo que reincendeia/ as cinzas do meu amor. Sem nenhum vestígio do amor como uma maldição, sem fazer gênero de poeta romântio, decadente ou pós moderno, Gildemar exercita o amor vivido, presente, passado, desejado, mostrando o que se dá quando ele acontece ou simplesmente conceituando-o: amar é devoção sobre todas as coisas... ou dando a receita de sua perenidade: o amor é concreto / é preciso construí-lo com tijolos de carinho. Desta forma, canta e decanta o amor, marcando a ferro e fogo em seus versos sua indelével existência, sempre num sopro de bonança, nunca de tempestade, como quem consegue cumprir a promessa de construir um tempo sem dor ou, pelo menos, de manter uma resistência consciente a tudo o que for adversidade.Parabéns, poeta, pelo menino que fazes permanecer no homem que és!

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