Fortaleza voadora é o mais novo livro do escritor cearense Pedro Salgueiro que, após quatro volumes de contos (O peso do morto, O espantalho, Brincar com armas e Dos valores do inimigo), estréia no gênero crônica. A cidade é a temática recorrente, como o título prenuncia, mas não a bela “loura desposada do sol”, como celebram os versos de Paula Ney. Pedro faz, sim, um canto de amor, mas às avessas. Embora se perceba, através das epígrafes do romance A Normalista, uma adesão ao espírito crítico de Adolfo Caminha a Fortaleza provinciana do século XIX, (quando o autor, ferido com o julgamento dado a ele pela sociedade cearense, vingou-se sagazmente através da ficção), lê-se, nas entrelinhas das crônicas de Pedro, mais um lamento do que propriamente uma zombaria. A primeira crônica parece trazer a voz de uma criança magoada porque não foi convidada para a festinha. Ou a de um marido que diz odiar a esposa só porque foi passado para trás. O que o narrador odeia é tudo o que ele nunca experimentou, conhece por ouvir falar; é tudo o que ele queria que fosse diferente, mas não pode mudar. Ele não segue a máxima “ame-a ou deixe-a”, porque ama o que critica (apenas por que não é como ele queria): “Te odeio, Fortaleza, como aquele marido traído, que te bate e xinga, mas não te deixa” p.14)
Os sujeitos da cidade – os “pinadores” de ônibus, o velho caviloso com os bolsos cheios de bombons, os homens viris que povoam a Praça do Ferreira, os banheiros de cinema ou os ônibus – personagens de algumas crônicas, em “Os Vampiros” corporifica-se num tarado que, engraçado, tem o próprio perfil do autor: “é calvo, altura mediana, um risinho cínico no canto do lábio; anda sempre com uma agenda surrada e um jornal do dia na mão esquerda”. Como diz Tércia Montenegro em seus comentários sobre a obra, “o alvo muitas vezes se volta para ele mesmo”, que não se exclui do “desajustamento” de que acusa seus conterrâneos. A praça e o ônibus são seus cenários prediletos, pois é exatamente nesses lugares que os sujeitos da rua atuam: o sábio charlatão, o tarado, os jogadores de dama que urinam na calçada da Academia, o bêbado, o trocador do ônibus e os passageiros. Pedro utiliza a Cidade como um laboratório e, com seu agudo senso de observação, transforma uma cena banal em um texto irônico e até cômico, como ocorre em “Um bêbado” e em “A catraca”.
A crítica à falta de memória do povo cearense é mais que lícita. A crônica “Vergonha”, que toma a cidade como “a nossa burrinha loura desmiolada pelo sol”, parodiando o verso antológico de Ney, traz reiterações através do redundante uso das conjunções adversativas – “Mas, entretanto, no entanto e contudo (além do vulgar mas útil mas)” – para reforçar o lamento pela destruição dos prédios que deveriam ser preservados. A cidade é o meio que ele utiliza para fazer sua crítica, mas o alvo é o povo de sua terra. Há, aí, um processo metonímico: o todo pela parte. Quem são desmioladas são as autoridades que não tomam conta da cidade como deveriam; quem é desmiolado é o povo que cruza os braços, passivo, sem saber o que perde.
A cidade e suas perdas se desenham linha a linha: seus monumentos, sua alegria (o trapezista não tem mais esperança de que o Circo sobreviva), a vila, a Gentilândia desfigurada pelo progresso. Resta a figura do Alcides (Pinto), símbolo de resistência, a pairar quase como um espectro numa cidade onde “nem um galo pode mais cantar”.
A influência de J. J. Veiga, presente em contos seus anteriores, volta a se fazer notar em “A passagem do Dragão”, que lembra, pelo insólito, “A estranha máquina extraviada”. O cronista e o contista se confundem, se tocam, na recorrência temática do sumiço de Luzanira no Carnaval e em “Desconfiança”, cujo desfecho surpreende o leitor: a mulher flagra o marido de amores não com uma amante, mas com uma boneca inflável.
Fortaleza voadora celebra uma cidade que foi – “E é certo que estes mundos quase invisíveis, estas esquinas impossíveis do tempo, precisarão sempre de um ouvido atento, de dois olhos bastante distraídos, para não desaparecerem entre as infinitas peças que movimentam a engrenagem desse gigantesco mecanismo do mundo” (p.62). Pedro insiste em ter esses ouvidos e esses olhos a perscrutarem o passado. Ele quer, por força, pelo menos conservar na memória o tempo em que a cidade não era uma selva. O saudosista é inimigo do progresso, ele assume; como assume que, para sobreviver a ele mesmo, muda de casa mais de uma vez no ano tentando fugir de si próprio (“Mudança”). A insatisfação é transferida para as casas, para a cidade que não o cabe mais, que ele não reconhece mais. Pedro é cruel com Fortaleza? Não, é um velho moço apaixonado e deixado, em busca de uma “loura” que só existe, agora, em sua saudade.
CICLO INEVITÁVEL
Há 2 meses
Um comentário:
necessario verificar:)
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