domingo, 19 de agosto de 2007

“Bolha de osso”: estética do inconcluso


A Literatura pós-moderna tem como uma de suas principais características o ecletismo. Há espaço para todas as tendências: tradição e modernidade dialogam sem problemas, os gêneros se entrecruzam, legitima-se a pluralidade. Parte da geração 90, especialmente a da prosa, tem abolido o discurso linear e investido na fragmentação do texto, modelo que vem de experiências anteriores como as de James Joyce, Virgínia Woolf e Oswald de Andrade, entre outros transgressores em sua época. A tradição permaneceu ao lado dessas novas invenções. Nelson de Oliveira, no prefácio da coletânea Geração 90 – os transgressores, falando desse assunto, convoca o leitor a “deixar de lado a conotação apenas positiva do termo transgressão e meramente negativa de conservação”. Confirma, assim, a ampliação dos espaços para todas as tendências, ao dizer que tradição e ruptura são “forças equivalentes, ambas trazendo no bojo cargas igualmente positivas e negativas”. A esse respeito, Bauman diz: “Os estilos não se dividem em progressista ou retrógrado, de aspecto avançado ou antiquado. /... / Todos os estilos, antigos e novos, sem distinção, devem provar seu direito de sobreviver, aplicando a mesma estratégia, uma vez que todos se submetem às mesmas leis que dirigem toda a criação cultural, calculada – na frase memorável de George Steiner – para o máximo impacto e obsolência imediata”.

Além da eliminação das fronteiras entre arte erudita e popular, clássico e moderno, da preocupação com o presente e do fragmentarismo textual, a geração de 90 mostra uma postura essencialmente individualista. Vivendo em um mundo sem norteadores para sua existência, ela parece voltar-se para si mesma, preocupando-se em criar o que parece lhe satisfazer. Quanto ao leitor... cabe a ele o desafio de encontrar (ou não) sentido nos textos. Não há, como assinala Bauman, projeção para o futuro, há uma tendência à transitoriedade, bem como à concisão, reflexo, talvez, de uma sociedade onde tudo deve ser consumido muito rápido e tudo é descartável. Inexiste, pois, na produção desses escritores, preocupação em serem entendidos ou vontade de radicar-se na história da literatura.

Jorge Pieiro, que iniciou sua trajetória literária no final dos anos 80, é assumidamente um experimentalista. Sua produção ora irônica, ora nonsense, ora surreal, é naturalmente malcomportada, fragmentada e, na maioria das vezes, hermética, insana. Seus livros são sempre considerados “magros cadernos de palavras”, exatamente por que não há preocupação com a extensão dos textos, tampouco com o número de páginas. São, entretanto, jogos de palavras densos, caudalosos que desafiam o leitor e, feito o mergulho, fazem sentido. Têm uma lógica, ainda que particular.

Ele acaba de lançar seu oitavo título, Bolha de osso, uma bem cuidada publicação, com o selo Edição do Caos, sedutora já na aparência. A obra se compõe de 69 contemas, como ele mesmo faz questão de designar. Contemas porque são contos curtos, ou ensaios para contos. Contos que podem também ser considerados poemas, prosa poética, enfim: contemas. O gênero é o que menos importa. Importa a força de sua palavra, sempre lacunosa, mas extremamente firme, certeira, construtora da estética do inconcluso. Sim, porque seus textos iniciam e logo findam sem terminarem de fato.

A obra começa, bem a Brás Cubas, com uma “quase advertência” ao leitor: “Sem iludir nem permitir falsa luz de obviedades, convém adverti-lo: prosseguindo, enrede-se e não se espante com desencantos. Daltontrevisanizo-me uilconiamente. Deixe-se, de sentir. Morrer é casulo. Liberte-se. Torne-se. Nesses textos-contemas salve-se em espírito de soluços. Procure tornar-se cúmplice de palavras, sábio. Verá que natureza e amor se fazem com inexatidões, perplexidades, alegorias e prenúncios. Se preferir, desista. Ninguém se quer mártir em folhas de papel”. O estilo JP é marcado a partir daí: desafio ao leitor, equilíbrio na inexatidão, influência assumida do curitibano Dalton Trevisan, leituras antigas e permanentes. Identificação. Também declaradas estão as leituras de Uilcon Pereira que, no dizer de Nilto Maciel, é escritor do século XXI, do futuro, o criador de uma nova literatura. De fato, JP, como Uilcon, corre um sério risco de se tornar um de seus insuspeitos personagens. Foi o Nilto que disse isso do escritor paulista, comentado que “em sua obra ocorre uma sobreposição de realidade, não se sabendo bem onde começa a ficção, onde existe a fantasia”. Digo o mesmo de JP. Seu espírito irônico e corrosivo transplanta muito da realidade para a ficção. Há arranjos cáusticos, outros bem-humorados, homenagens, pequenas vinganças até e há Ele na transversal de tudo.

No primeiro contema, “Prelúdio”, outra influência escancarada que vai perpassar toda a obra: Guimarães Rosa. A linguagem elíptica e inventiva reconta a história de Riobaldo e Diadorim, mais precisamente, o momento em que o jagunço descobre que o companheiro, então morto, por quem estivera apaixonado era uma mulher: “Enquanto desviei céu e olhar, vi longas barbas, era Miguelão desfazendo de cruz o sinal de ex-pranto. Vocês, atordoados, correram pelaí. O medo é uma corredeira. Eu engasguei na cantiga: - Asas de diabo mais compridas. No alto, Miguelão beijou Diadorim, enciumando Rosa entre as pernas de Riobaldo, que no meio de tanta dor repetiu o gesto” (p.13). A linguagem e o estilo são totalmente roseanos, como se comprova ainda em: “Longe dali, alguém se engoliu de cianureto. Débil. Cápsula de feliz morte, nele se desvivendo como sempre”. Note-se que em “Enquanto desviei céu e olhar” é a sonoridade quem dita o sentido: “Enquanto desviei seu olhar”. Rosa todo.

Há histórias nas histórias. Pode não haver a lógica tradicional. Ou ela pode estar velada: “Mania toma seu homem entre mãos, beija-o. Com o facão parte aquele principal em dois. E o dá a seus cães. – Isto é o corpo de nossa última aliança. Anoitece” (“Beijo de Anum”) - A mulher decepa o órgão sexual do marido e celebra a fidelidade então possível, como se consagrasse um corpo divino, qual o padre faz com a hóstia no altar. Assim se fazem todos os textos, sem digressões, explicações ou... conclusão. Anoitece. Que conotações partem desse verbo? Muitas.

Seus personagens são seres não-felizes, dilacerados, escassos de existência. É a dançarina assassinada na boate, é o mendigo que, na hora do amor, esquece a miséria: “Primeiro lambe-lhe a coxa alta e olho. Depois descem de dois até a arena. Íris conhece aquele chão. Ali ele esquece vontade, fome, mãos, pés” (“Kaletzip”); a prostituta sempre acompanhada e sempre só, o homem anônimo que anda na contramão do progresso, a mocinha seduzida, a índia despersonalizada, o macho devorador, vampiro, estuprador, o Marquês impotente, o velho tarado que se aproveita da ausência da mulher, o necrófilo. Muitas histórias de sexo contadas com humor, assassinatos e júris quase imperceptíveis... O sopro trevisaniano é muito presente, mas a linguagem de JP, cheia de metáforas (o sexo da mulher é a azeitona mordida, a hortaliça viçosa) e subterfúgios, uso consciente das potencialidades expressivas da língua, garantem um estilo próprio, ironicamente lacunoso, emprestando certa safadeza aos personagens masculinos que muito têm do Nelsinho d’O Vampiro de Curitiba, embora não seja essa a obra de Trevisan que mais esteja presente.

Oswald de Andrade e seu resgate do Brasil colonial aparecem na retomada da índia como ser explorado. JP a mostra seduzida pelo branco: “13 anos, quer mais sonhar não. Rapagão passeia mãos, corpo. Pensa: ‘Rapagão é Vasco da Gama’. Diz para ele cuidar de descobrir outros mundos. Rapagão gosta, danado. Sem fôlego, moreninha. Rapagão cruza fim de mundo. Cheio de especiarias retorna. Pensa: ‘Índias, melhor lugar de qualquer mundo’ (“Moreninha”). É inevitável lembrar Iracema, índia de José de Alencar que, no romance homônimo, é seduzida pelo português-colonizador Martin e depois desprezada. Em “Cara pálida” essa lembrança se explicita e concretiza-se na nominação: “/.../ Matar a índia. Diz primeiro, te amo. Depois arrebenta. Zíper abaixado. Mão de calo preciso. – Uhhh! Iraceminha!”. Observe-se a conotação do verbo matar e a referência ‘quase implícita’ a uma transa. Em “Crua”, esse ritual é simbolicamente antropofágico e a idéia é de violação: “Covarde. Alguém é covarde sempre. Cobre-se de Capuz e adentra. Há três mulheres vestidas /.../ Empurradas por outros dois, duas colocam capuzes, também. Obrigadas, devoram a gritos carnes de Tu”.

A JP o que conta não é o que conta. A forma como o faz é que importa. Seu hermetismo, às vezes apurado, como em “Longe de Arthur”: “Seis que um dia vieram dentro de mim. Seis. Sei o que sinto. Não sei, as marcas. Massas de mãos. Eu, Ninica, sei o que me trinca. Seis não dá em nada” deixa brechas para o leitor inferir ou atribuir um sentido ao que parece não tê-lo. Ninica pode ser a narradora ou a narratária. No primeiro caso, entrevê-se a lembrança de um estupro. No segundo, o narrador é um homem e Ninica é a narratária de seu discurso; “não dá em nada”, assim considerando, pode inferir a frustração de uma relação ‘trincada”, não mais possível. O que era já não é. As interpretações assim se fazem e, ao cabo de um percurso caudaloso, após fugir de tempestades e escapar de monstros marítimos, há terra à vista. O leitor deixa de ser passivo e constrói seu próprio enredo.

Jorge Pieiro é uma experiência prazerosa porque há o que ler. Linhas e entrelinhas. Textos e subtextos. No final, no contema 69, não despretensiosamente, “de frente, olho no olho”, e não no reverso, tudo dá em mar e... a Bolha de osso, tão dura de roer, vira um brinquedo para quem gosta de provar bem sucedidas experiências com as palavras. Sua literatura tem valor não porque é transgressora, de ruptura, numa época em que também se elevam os enredos tradicionais, que não descosturam a gramática nem fragmentam seus discursos, mas pela autenticidade de seu estilo, pela irreverência de sua postura como escritor e pela capacidade de manter-se novo dentro do que já não é.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998
MACIEL, Nilto. Uilcon Pereira, um Escritor do Século XXI http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=128&cat=Ensaios&vinda=S Acesso em 7/7/07
OLIVEIRA, Nelson de. “Transa Trans: Tributo às tribos extintas” In: Geração 90 – os transgressores. São Paulo: Boitempo, 2003
ROSA, Guimarães. Grande sertão:veredas. Ria de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
TREVISAN, Dalton. O Vampiro de Curitiba. 27ªed. São Paulo: Record, 2004

Publicado no Carderno de Cultura do Diário do Nordeste - 19.08.2007

Um comentário:

Walmir disse...

Cara Aila,
uma avalição literária que me dá vontade de conhecer o autor. Vou tentar, talvez o encontre aqui em Belo Horizonte.
E continuo: onde posso encontrar seus escritos, sua obra de contista, poeta ou romancista?
Pode me responder no blog http://walmir.carvalho.zip.net
Paz e bem